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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

“São Jorge” como a ‘troika’: a bem ou a mal tens que pagar

José M. Bastos
José M. Bastos
Crítico de cinema

Em exibição

Acontecimento pouco vulgar e que merece ser saudado: estão nesta altura em exibição comercial vários filmes portugueses.

 A nossa avaliação: 

Falaremos neste texto de um deles.: “São Jorge”, de Marco Martins.

Marco Martins

Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema em 1994, Marco Martins, agora com 45 anos, pertence ao grupo de cineastas formado por aquela instituição – Pedro Costa, Teresa Vilaverde, Joaquim Sapinho, João Pedro Rodrigues, Manuel Mozos e outros – que a partir do início dos anos 90 (ou até um pouco antes) tem assinado alguns dos títulos mais importantes do cinema português.

Estagiário de Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier foi  assistente de realização de João Canijo e é habitualmente o autor dos argumentos dos seus próprios filmes, em alguns casos em co-autoria com guionistas e escritores renomados (por exemplo, o italiano Tonino Guerra ou Gonçalo M. Tavares).

O seu percurso como realizador começou na curta-metragem com “Mergulho no Ano Novo” (1992), premiado em Vila do Conde e “No Caminho para a Escola” (1998), distinguido em Orense e Badajoz, como trabalhos mais significativos. Em 2005 deu a conhecer a sua primeira longa-metragem: o excelente

“Alice”, protagonizado por Nuno Lopes e Beatriz Batarda no papel de um jovem casal na procura desesperada da sua filha desaparecida. Estrado em Cannes, “Alice” foi o candidato português ao Oscar do Melhor Filme Estrangeiro e é, em nossa opinião, um título absolutamente incontornável do cinema português da primeira década deste século.

“São Jorge”, um combate desigual contra o ‘dragão da maldade’

Onze anos depois, com algumas curtas e uma longa de permeio (“Como desenhar um Círculo Perfeito, de 2009),  Marco Martins reaparece com um filme de importância inquestionável: “São Jorge”. Estreado no Festival de Veneza de 2016 na secção “Orizzonti” só há escassas semanas chegou à exibição comercial no nosso país.

O principal intérprete de São Jorge” é, de novo, um extraordinário Nuno Lopes (prémio de melhor actor em Veneza, na secção referida) no papel de Jorge, um pugilista e desempregado que vive com o filho (ainda criança) na casa dos pais. Os cenários são os Bairros da Bela Vista (Setubal) e Jamaica (Seixal). O tempo, o da intervenção da “troika” em Portugal. A mulher de Jorge (e mãe do filho), emigrante brasileira, trabalha em limpezas, vive noutra casa, e quer regressar ao Brasil.

Na tentativa de arranjar uma solução que impeça o desfazer da sua família Jorge procura trabalho e acaba por encontrá-lo numa empresa de cobrança de dívidas. A intimidação e a ameaça passam a ser o quotidiano de um pobre coitado dividido entre a luta pela sobrevivência é a má-consciência de se sentir perseguidor e agressor de tipos que não têm como pagar as suas dívidas, alguns tão desgraçados como ele. A “troika” obriga Portugal a pagar, quaisquer que sejam as consequências.

Jorge é “obrigado” a fazer o mesmo àqueles que não conseguem pagar as suas dívidas usando o porte atlético que adquiriu na prática do boxe. Alguns, empresários que não têm como pagar aos fornecedores. Outros, incapazes de saldar os empréstimos que foram convidados a contrair. Quem não se lembra das grandes campanhas de publicidade, nos jornais, nas televisões, e até nas portas dos táxis e nas traseiras dos autocarros, que faziam crer que obter um empréstimo para o quer que fosse era a coisa mais fácil do mundo. Bastava um telefonema… Atenção: essa publicidade já aí anda outra vez (se é que alguma vez desapareceu)!

Com um início com imagens tão tenebrosas como poderosas, de um país parado, armazéns e fábricas abandonadas, parques de estacionamento de supermercado desertos (com um desgraçado à espera, como se esperasse a lotaria, que alguém deixe um carrinho sem lhe retirar a moeda de 50 cêntimos), “São Jorge” dá ao espectador um retrato tão incómodo como verdadeiro de um tempo muito penoso da nossa história colectiva e, infelizmente, ainda não completamente ultrapassado. Um retrato negro que é, ao mesmo tempo, um espelho em que muitos se podem rever.

Muito se falou de “Belarmino” de Fernando Lopes a propósito deste “São Jorge”. “Belarmino” é, pelo menos aparentemente, um documentário : sobre um boxeur e sobre Lisboa e Portugal de uma época determinada. O grande drama deste “São Jorge” é que este não é um vulgar filme de ficção como aqueles em que, quando a história nos incomoda, temos sempre uma saída: isto é tudo a fingir… Aqui não. Não há saída!… O que vemos no ecrã é (foi?) um retrato fiel da realidade. Claro que os negacionistas, os tais do “ai aguentam…aguentam”, dirão que não. Para nós, “São Jorge”, filme de ficção, é afinal um belo e tristíssimo documentário. Um documentário com um actor superlativo: Nuno Lopes, um “santo guerreiro” envolvido numa luta inglória contra o “dragão da maldade”.

 

 

 

Título: São Jorge
Realização: Marco Martins
Argumento: Marco Martins, Ricardo Adolfo
Fotografia: Carlos Lopes
Intérpretes: Nuno Lopes, Mariana Nunes, David Semedo, Gonçalo Waddington, Beatriz Batarda, José Raposo, Jean-Pierre Martins,…
Origem: Portugal
Ano: 2016
Duração: 112 minutos

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