Uma vez que os Governos de Passos Coelho e de António Costa tiveram tantas saudades do Banco de Fomento, privatizado a favor do BPI e nele integrado, que já o recriaram, ambos, e que António Costa até lançou agora um Plano António Costa (Silva)…
… seja-me permitido manifestar as minhas saudades do Plano de Fomento, lançado por António de Oliveira Salazar em 1953 , Plano de Fomento que de certo modo é o pai de Planos como o que agora se anuncia.
O avô, diz a investigação de paternidade, foi o plano quinquenal soviético, o que o regime teve o cuidado de não admitir. Escreveu aliás Carlos Corrêa Gago, que era em 1974 o director-geral do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho de Ministros:
Foi neste berço de contradições que nasceu o planeamento económico em Portugal. Com planos hexenais, para não serem quinquenais; com acções sobre a produtividade importadas de França (Commissariat Général au Plan et à la Productivité) porque se não queriam suspeitas de stakhanovismo: com um órgão central técnico para apoiar a concepção e execução da política económica do governo, este porém benevolamente vigiado por uma Câmara Corporativa que o decisor final, a Assembleia Nacional, tinha de ouvir. Ficavam assim marcadas as convenientes distâncias relativas ao Gosplan.
O I Plano de Fomento (1953-58) foi ainda basicamente uma listagem de investimentos, à semelhança da anterior Lei de Reconstituição Económica (1935-1950), assim chamada para marcar o sucesso da Reconstituição Financeira decretada em 1928 como enquadramento das primeiras medidas de Salazar enquanto Ministro das Finanças. O II Plano de Fomento (1959-1964) teve já um enquadramento macro-económico tendo Marcelo Caetano que coordenou a sua elaboração enquanto Ministro da Presidência, reivindicado à autoria dos progressos registados.
O Plano Intercalar de Fomento (1965-1967) foi elaborado numa altura em que a evolução do processo de integração europeia não era clara e tanto as exportações como o investimento foram afectados por uma conjuntura recessiva. O III Plano de Fomento (1968-1973) que beneficiou largamente dos contributos de uma estrutura participativa – os Grupos de Trabalho da Comissão Interministerial de Planeamento e Integração Económica – integrou já perspectivas de Reforma Administrativa. O IV Plano de Fomento (1974-1979) iria ser concretizado com o apoio de um regime de programas autónomos de investimento dotados de personalidade jurídica e de autonomia financeira e que seriam dispensados de visto do Tribunal de Contas, que seria substituído por pareceres vinculativos de delegados deste junto das respectivas administrações.
Os Planos de Fomento vinham registando um grau cada vez maior de aperfeiçoamento técnico e do ponto de vista de conteúdo abrangiam orientações em que se podiam rever to tal ou parcialmente correntes progressistas, aliás uma grande parte dos participantes envolvidos nos trabalhos de planeamento estavam ligados a sectores liberais, designadamente aos que se organizaram na SEDES, ou até a sectores oposicionistas. Técnicos ligados ao planeamento como Carlos Corrêa Gago, Vítor Constâncio e João Cravinho viriam a ocupar na nova situação cargos politicos relevantes. Não é de estranhar neste contexto que no Decreto-Lei em que definiu o Programa do Governo Provisório a Junta de Salvação Nacional tenha determinado a manutenção em vigor do IV Plano de Fomento e a sua revisão.
O mais próximo contudo que o Governo Provisório – nessa altura já o III Governo – se aproximou de cumprir essa incumbência foi a elaboração e aprovação foi o Programa de Política Económica e Social, que ficou conhecido por Plano Melo Antunes e foi publicado com a seguinte menção:
O presente Programa de Política Económica e Social, obra colectiva do Governo Provisório, após apreciação pelo Movimento das Forças Armadas, foi aprovado em Conselho de Ministros na sua sessão no dia 7 de Fevereiro de 1975.
A partir daí a revisão formal do IV Plano teria sido fácil e os vários governos que se sucederam teriam ficado sujeitos a algum grau de disciplina, assente na consensualização deste instrumento, que haveria de cumprir ou alterar. Pode-se dizer evidentemente que o Conselho da Revolução que sucedeu à Junta de Salvação Nacional modificou os dados do problema ao adoptar a perspectiva socialista, que a esquerda olhava para o IV Plano de Fomento como ultrapassado e que a direita passou a recusar qualquer forma de Plano e a aborrecer a simples menção dessa palavra.
Estive ligado profissionalmente à orgânica de planeamento durante uma década da minha actividade profissional, entre 1976 e 1986, e ficaram-me na memória muitos aspectos que vão do anedótico ao trágico: a directora-geral que alterou a redacção do objectivo proposto pelo Ministério sectorial “eliminar no prazo de n anos as zonas do país ainda não electrificadas” substituindo “eliminar” por “iluminar”; a inglória liquidação do esforço da Secretária de Estado do Planeamento, Manuela Silva, para apresentar um Plano de Médio Prazo 1977/80, assente num conjunto de relatórios elaborados com recurso a participação externa e amplamente divulgados; a falta de vontade de discutir os programas apresentados pelos Ministérios sectoriais com destaque para a posição assumida por um Ministro das Finanças e do Plano que mandou o Secretário de Estado aumentar pura e simplesmente em 20 % os plafonds do ano anterior; a inscrição num determinado ano no Plano de verbas que não constavam do Orçamento do Estado e por isso não poderiam ser gastas. Ficou-me dessa experiência uma grande falta de apetência para ler os documentos que de vez em quando são publicados com plano no nome.
Com a revisão constitucional de 1989 ficou prejudicada em grande parte o sistema de planeamento que tinha emergido dos últimos anos do Estado Novo e tinha sido consagrado no texto originário da Constituição em 1976 e a orgânica que se julgou consolidar em 1977. O Parlamento tem votado leis de grandes opções, tanto de médio prazo como anuais, após parecer do Conselho Económico e Social, e algumas destas têm dado lugar à elaboração de “planos nacionais de desenvolvimento económico e social” mas tendo recentemente visitado as grandes opções da legislatura anterior a propósito do PART encontrei pouco mais do que exercícios literários que o protagonismo dos vários parceiros obrigou, após negociação, a converter em acções concretas.
Do esforço de planeamento da legislatura anterior resultou igualmente a votação pela Assembleia da República de um Plano Nacional de Investimentos, que recentemente terá suscitado críticas do Conselho Superior de Obras Públicas. No que se refere à actual legislatura já estamos dotados de Lei de Grandes Opções pela qual “São aprovadas as Grandes Opções do Plano para 2020-2023 que integram as medidas de política e os investimentos que as permitem concretizar”.
Pergunta-se:
Então porquê pedir a António Costa Silva um Plano e uma relação de Investimentos?
A explicação é simples:
- António Costa Silva é para todos os efeitos práticos um Extra-Terrestre (E.T.);
- Governos, Parlamento e Conselho Económico e Social estão de tal forma descredibilizados que é preciso um E.T. para abordar o desenho de políticas e a propositura de investimentos de forma original.
Vejo com simpatia a sua disponibilidade, li com interesse algumas das suas propostas iniciais e aprecio o seu esforço de diálogo, de que vamos tendo ecos.
Vejo no entanto necessidade de ter cuidado em três áreas.
A primeira é a da coerência com os limites dos recursos financeiros disponíveis.
Dizia Salazar no lançamento do I Plano de Fomento:
A segunda observação a ter presente é que, ao destinarem-se verbas avultadas para o Plano, se deixaram intactas as despesas ordinárias e se mantêm nos quantitativos normais, senão acrescidos, as despesas extraordinárias para aplicações não consideradas ou previstas nele. Esta dupla consideração responde a quantos manifestaram estranheza por não verem dotados todos os melhoramentos, obras ou realizações de necessidade indiscutível e mais ou menos urgente. Espera-se que algumas delas sejam atendidas por outra forma; é porém manifestamente errada a ideia de que podemos ter no próximo ano o Plano de Fomento e … ainda tudo o mais.
A primeira disciplina a exercer é pois nas despesas públicas; a segunda nos investimentos particulares. O Plano foi elaborado tendo presente o conjunto de disponibilidades de que o Estado e particulares podia usar para determinados fins. Nada se impõe aos particulares, nada se mobiliza forçosamente do que lhes pertença, mas tem de assegurar-se que o caudal dos recursos nacionais. Respeita-se a iniciativa e a propriedade, mas não se pode esperar que grandes empreendimentos possam ser lançados no mesmo período e com os mesmos recursos que se previu deverem cobrir o Plano de Fomento.
Por muito grande que seja o volume de fundos da União Europeia, este tipo de preocupações não deixa de ter actualidade, aliás o ser 2021 ano de eleições autárquicas, com municípios dotados de maior autonomia e de capacidade financeira que no tempo de Salazar, levará necessariamente a que surjam muitos projectos a disputar recursos.
A segunda é a coerência dos vários projectos dentro do conjunto e com os limites existentes em termos de recursos físicos e de impacto.
São conhecidas por exemplo as dificuldades de realizar investimentos na rede ferroviária por falta de recursos especializados e as dificuldades de preencher postos de trabalho na área de informática, mas é de esperar que com a aprovação do plano de investimentos se identifiquem outras áreas em que a formação terá de responder.
Por outro lado os investimentos têm de ser compatíveis entre si. Não se compreende por exemplo por que razão estando a ser equacionado o lançamento de quase alta velocidade entre o Porto e Lisboa, a IP avançou recentemente com um projecto de remodelação de Coimbra B que não será o mais adequado para o efeito e que a Câmara se apressou a aprovar.
Também a opção entre um novo Aeroporto no Montijo e o lançamento do primeiro modulo do Aeroporto de Lisboa em Alcochete deverá ser de novo equacionada e justificada, até porque a questão do impacto ambiental poderá dar origem a activação dos mecanismos de oposição que houve que admitir.
Last but not the least , parece-me inevitável que a lei de Grandes Opções do Plano 2020-2023 seja objecto de revisão, de forma a integrar as perspectivas introduzidas por António Costa Silva e consagrar mecanismos de participação e de fiscalização suficientemente efectivos e convincentes.
Se assim for feito, e se o Plano deixar de ser um mero saco de palavras, prometo uma leitura atenta.
Carlos Corrêa Gago, “Introdução”, Planeamento Económico em Portugal 1953-1954. Um Acervo Histórico.(coordenado por Maria José Oliveira e Cruz). DPP , 2006.
Minhas Memórias de Salazar, Lisboa: Editorial Verbo, 1977.
Lei nº 7/73, de 22 de Dezembro (Autorização das receitas e despesas para 1974) e Decreto-Lei nº 126/74, de 30 de Março (Regula a organização e gestão dos programas autónomos previstos na Lei de Meios de 1974).
Decreto-Lei nº 203/74, de 15 de Maio da Junta de Salvação Nacional (Define o programa do Governo Provisório e estabelece a respectiva orgânica)
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1975.
Evidentemente que por um lado com a promulgação da nova Constituição haveria que fazer uma segunda revisão do Plano 1974-1979 e, por outro, a parte relativa ao Ultramar deveria ir sendo declarada caduca à medida que foram sendo negociadas as várias independências.
“O Plano de Fomento, Princípios e Pressupostos”, discurso proferido em 28 de Maio de 1953, Discursos e Notas Políticas V 1951-1958, Coimbra: Coimbra Editora.
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