Diário
Director

Independente
João de Sousa

Sábado, Novembro 23, 2024

Scriptura Semper Reformanda?

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

nao-ao90

A Gisbertus Voetius, pastor protestante holandês (1589-1676) atribui-se a frase Ecclesia reformata et semper reformanda est. Teria sido proferida no Sínodo de Dort (1618-1919).

Forjada em latim, a sua tradução (possível, dado o carácter sintético do latim) é: A Igreja está reformada e deve estar também sempre a ser reformada. Tornada um mote, expressa o desejo de igrejas protestantes, surgidas da Reforma, permanecerem numa dinâmica de perpétua Reforma e de conformidade ao Evangelho e a Cristo, de quem, humildemente, assumem depender. O título deste texto, inspirado nesse mote, parece querer dizer que também esta mesma questão se pode aplicar à Bíblia, a Scriptura. Ora, desengane-se, leitor. Não vamos falar de Scriptura, nem de Bíblia nem de nenhum tema religioso (aparentemente). Mas de scriptura, como escrita em geral, ou como modo de escrever; mais propriamente, de orthografia, para o expressarmos num latim decalcado do grego. Sim, o leitor já percebeu: de reformas ortográficas. Não do latim, mas do português.

A linguísta Ana Salgado (AS), no seu currículo, é cotada como “coordenadora científica do Departamento de Dicionários da Porto Editora. Coordenou a edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, sob a orientação científica do professor João Malaca Casteleiro, a segunda edição da versão portuguesa do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, várias edições do Dicionário Editora da Língua Portuguesa da Porto Editora, bem como obras didáticas [sic] sobre a nova ortografia. Foi uma das responsáveis pela página do Conversor Ortográfico da Porto Editora e pela aplicação das novas regras ortográficas a todo esse grupo editorial”. Hoje trabalha na Academia de Ciências de Lisboa. Impressionante, sem dúvida, o que faz dela uma pessoa bem posicionada para reflectir e tomar decisões, para o bem e para o mal, no tocante à fixação das formas de escrever e à justa avaliação destas como boas ou más, sábias ou néscias, adequadas ou inadequadas.

No dia 18 deste mês, publicou em acesso electrónico aberto uma reflexão intitulada Os 7 pilares da ortografia. AS escreve de acordo com “Acordo Ortográfico de 1990” (AO90) e a sua actividade científica tem sido colocada ao serviço da aplicação das normas deste tratado internacional. Porém, este artigo merece saudação: é uma reflexão sábia e avisada que olha para alguns dos problemas reais que essa norma, tanto pelas suas características intrínsecas como pelas consequências da sua aplicação prática, está a causar no uso da língua. Faz o que é extremamente raro ver nas fileiras dos defensores do AO90: a abordagem crítica.

Ainda não é o mea culpa, ou não tivesse a autora as responsabilidades científicas que teve no maior grupo editorial português. Com efeito, o zelo, uma teimosia um tanto religiosa imperam nas bandas dos defensores do AO90. O itálico é propositado, pois na Nota Explicativa ao AO90 culpa-se a “teimosia lusitana” da manutenção de consoantes mudas, quando o Brasil já as proscrevera. Temo até que AS venha a ser excomungada por alguns bispos e teólogos da religião acordista, os mais fervorosos dos quais escrevem em blogs e no Facebook. Por outro lado, que alguém com tais responsabilidades se dê a este exame crítico é um sinal positivo: o AO90 não é, mesmo para os adeptos dessa religião da pseudo-unificação galáctica da língua, assunto encerrado, facto consumado, magister dixit, reformata per saecula saeculorum, amen. Reconhece que, afinal, há iotas e tis a pedirem para serem mudados nessa scriptura.

Resumamos as ideias da linguísta e comentemos algumas delas, que o merecem. Não sem aconselhar o leitor a ler o texto em questão. Viajando sucintamente pelas reformas anteriores da escrita (as produzidas no século XX) e pelos princípios e modo como foram feitas, propõe uma reforma da ortografia, a qual se dever fundar nos seguintes 7 pilares: 1- simplificação: 2- fonético; 3- etimológico; 4- da analogia; 5- tradição ortográfica ou consagração pelo uso; 6- exaustividade; 7- bom senso. Comentaremos alguns.

Reconhece a autora o que todos aqueles que razoadamente se debruçam sobre esta questão reconhecem: “Uma ortografia rigorosamente etimológica seria hoje inadmissível”. Não menos do que isso afirma quem se opõe ao pateta AO90. A escrita estritamente etimológica (latinizante, por influência francesa) durou em Portugal até 1911. Ficou para trás. Podemos lê-la sem problemas, gostamos de a ler, como lemos a francesa ou a inglesa, mas não queremos a “pharmacia” – a refutação mais tolinha e abundamentemente brandida pelos acordistas contra os desacordistas. A reforma de 1911 e da fixação normativa de 1945 destruíram muitas ligações etimológicas, mas – valeu o bom senso –, não todas. E isso mesmo, “bom senso”, exige AS. E precisamente a norma de 1945 tem esse “bom senso”, merecendo de AS um justo elogio:

“Contrariamente ao critério fonético, a etimologia une na escrita os falantes. Esta preocupação estava bem explícita no 3.º da Base VI da Norma de 1945: «Conservam-se … nos casos em que  … ocorrem em seu favor outras razões como a tradição ortográfica …»”.

Importa, pois, conservar laços etimológicos, princípio que o próprio AO90 não expatria de todo, pois é com base nele que mantém a consoante muda por excelência, o h inicial. Os laços etimológicos sustentam o pilar da analogia, sem o qual “determinadas incoerências” se produzem. Entre estas, aquela que é mais frequentemente assinalada: egípcio, egiptologia, egiptólogo, etc., mas Egito.

No tocante ao pilar 2- fonético, tem sido ele (e o AO90 não inaugurou o procedimento) o principal determinante da eliminação de consoantes não pronunciadas. Este pilar realiza o primeiro, o da simplificação, sendo em nome desta que tais eliminações têm sido feitas. Mas, reconhece AS, e bem, que:

“… a criação de palavras novas com a aplicação da nova ortografia deve ser alvo de uma nova reflexão, como é o caso das grafias aceção, receção, etc. Se o princípio é unificador, na prática não deveriam existir casos que gerassem grafias diferentes entre as duas normas e, além do mais, que nem sequer existiam no sistema ortográfico português. Refira-se, uma vez mais, os riscos de ambiguidade que muitos destes casos apresentam.”

É para problemas destes que os desacordistas têm há anos alertado. E a realidade dos factos (é melhor dizer assim, pois não raro nos têm acusado de inventar casos, que, não obstante, surgem, com todo o seu esplendor de morte, à vista desarmada) tem-nos, infelizmente, dado razão. Não só na escrita como nas pronúncias estes problemas existem, estão documentados, e estão-no amplamente (em artigos de jornal, em blogs, em grupos de Facebook). AS falha somente numa coisa: não são riscos; é nisso, existência factual de “ambiguidades” que estamos! O bom senso obriga AS a escrever, mais abaixo, ao discutir este pilar, que:

“O que no nosso país não devemos nunca ignorar também é que a variedade portuguesa da língua tem a peculiaridade de fechamento das vogais átonas e que frequentemente a etimologia nos era muito útil”

Precisamente. Estamos felizes por ler alguém, acordista, confirmar o fenómeno, que os linguistas de 1911 já tinham confirmado. E por isso fizeram subjazer estes critérios científicos aos seus esforços de simplificação, que conduziu à eliminação de muitas consoantes etimológicas. Foi essa confirmação (e a de que certos p e c etimológicos funcionam como inibidores do fechamento a esmo das vogais precedentes) que os manteve avisadamente num certo conservadorismo, em vez de simplificarem ainda mais. Escrevinhadores há, em blogs e no Facebook que dizem ser um mito esse fechamento de vogais átonas. Mas também uma linguista da relevância de uma Maria Helena Mira Mateus o jurou, num jornal de grande circulação, o Público. O que é grave. Costumam citar como exemplos de que assim não é lemas como ilação, inflação, Aveiro, caveira, etc. Ora, não ocorre a estes pensadores que o que está em causa em exemplo tais são coisas diferentes. Aveiro e caveira, por exemplo, pressupõem formas em latim *Alavarĭau- e *calavarĭa. Em certa época da derivação do latim vulgar para o português muitos l intervocálicos sincoparam, de que resultaram hiatos, resolvidos por crase (fusão, mistura de vogais): *Alavaĭru- > *Aavaĭru- > *Aaveĭro > Aveĭro e *calavarĭa > e *calavaĭra > *caavaĭra > *caveira. Ilação e inflação são excepções.

Não se pode denegar um fenómeno ou uma relação de causa e efeito (empiricamente observada) apontando situações outras em que se esses fenómenos ocorrem. Isto é má ciência. É o mesmo que rejeitar que uma dor de cabeça apareceu a alguém porque não tem descansado o suficiente, dando como contra-exemplo o de outro alguém a quem a cabeça dói mas que tem descansado bem; talvez este segundo alguém tenha apanhado um vírus, ou a dor de cabeça seja um de vários sintomas de um resfriado. Isto só mostra o que toda a gente sabe: há várias causas para o mesmo efeito, as dores de cabeça. Semelhantemente, abertura ou fechamento de vogais têm explicações várias, em função dos casos. Aportamos em favor desta óbvia verificação a afirmação final de AS: “Uma lição deve estar sempre presente: cada caso é um caso.” Estamos à espera que alguns teólogos mais assanhados desta crença venham para os seus blogs e Facebook criticar AS por, nestes casos, mostrar que o rei vai nu.

AS revela o bom senso que falta, por exemplo, a um dos pais do AO90, Malaca Casteleiro. No colóquio Ortografia e bom senso, organizado há um ano na Academia de Ciências de Lisboa, que também o acolheu, Malaca Casteleiro proferiu uma comunicação intitulada O Acordo Ortográfico de 1990 contém carradas de bom senso”. Mas é AS, que com ele colaborou, quem revela mais bom senso. De tal modo que profere outra declaração que todos os desacordistas subscreveriam, mas que o discurso acordista condenaria ao seu index de estimação: “A escrita não tem uma função instrumental de mera representação da fala. Trata-se de uma aproximação, a possível.” BRAVO E PARABÉNS, ANA SALGADO! Que os outros acordistas leiam e, se possível for, algum deles assimile esta simples verdade. É que o primeiro mandamento do acordismo é “Escreverás como pronunciares apenas e só como pronunciares; e se hesitares na pronunciação, poderás, facultativa e irrestritivamente, escrever de duas formas diferentes; quando não, escreverás como te mandarem os profetas ILTEC, Porto Editora e outros. Amém.” O que se lê em blogs e no Facebook (merecendo likes) é que a escrita deve seguir a fala!

Poderá AS ser a primeira? Ousará levar a reflexão, com o seu quê de herético, até às últimas consequências, a saber, a abjuração do credo da superstição acordista? Com efeito, como não se chamará superstição a putativas e repetidas afirmações de unificação, prestigio mundial da língua, globalização da língua, poder económico da língua, língua portuguesa oficial na ONU? Então o AO90, já aplicado em Portugal e no Brasil, e timidamente em Cabo Verde, já conseguiu isso tudo? Escreve ainda AS: “… reconhecendo a pluralidade e diversidade do nosso idioma…”. Sim, como o inglês, que sem qualquer AO, é a língua franca do planeta. Ousará AS concluir que o AO90, ou qualquer outro, não fazem falta nenhuma e são – este é! – perniciosos?

Para já, AS clama por uma reforma. De uma língua que, no século XX, teve 7 reformas e contra-reformas 7: em 1911; 1920; 1931 (com o Brasil); 1940 (uma soft law); 1943-1944; 1945 (convenção luso-brasileira que unia totalmente a ortografia); 1973 (que alterou parcialmente a de 1945); 1990. Pelo meio, houve ainda a de 1986, de simplificação radical, não tendo vingado graças a ampla reacção da sociedade portuguesa e linguistas, escritores e académicos, tendo sido retomada pela de 1990, com expurgação dos seus piores artigos. Quanto ao Brasil: 1907/1912; 1943, recuperada a partir de 1955; 1971; e AO90[1].

1943 (variante nacional brasileira);

1955 (abjuração brasílica da convenção de 1945 e retorno à nacional de 1943, a costumeira até hoje); a de 1973/5, que alterou parcialmente a de 1945; e finalmente a de 1990, que retomou a de 1986 expurgando-a de alguns dos seus piores artigos. Mais uma, AS? A língua não aguenta tantos tratos de polé!

JÁ CHEGA! IRRA!

Fiquemo-nos pela ortografia de 1945, que os PALOP, Macau e Timor ainda seguem. Foi a pior de todas normas ortográficas, com excepção de todas as outras. E habituou a língua à estabilidade. E deixemos ao Brasil a sua, que este país tem seguido, estavelmente também, até aqui.

Ana Salgado, está disposta a ir um pouco mais longe? Repito: levando às últimas consequências a sua boa reflexão, uma vez, em certa medida, parece já não acreditar inteiramente naquilo que defendeu? Estamos cá para lhe dar as boas-vindas.

Post scriptum:

Convidamos o leitor a assinar a iniciativa de referendo ao AO90: em papel, descarregando a folha de assinaturas.

Assine também electronicamente a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o AO90.

E adira a grupos desacordistas no Facebook, onde poderá estar a par do caos ortográfico e ortoépico suscitados pelo AO90 e sua aplicação, saber como pode resistir à sua aplicação inconstitucional e participar de iniciativas várias levadas a cabo por cidadãos como o leitor:

[1] Agradeço a Ivo Miguel Barroso as informações precisas.

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -