Multiplicam-se as opiniões segundo as quais a sociedade está polarizada e a discussão no espaço público inquinada.
O confronto, a que alguns já se atrevem a chamar “guerra cultural”, atinge proporções algo preocupantes, principalmente quando tem como consequências a negação da negociação, do consenso e da solução, ou seja, a anulação daquilo que define, em parte, a essência da democracia como a conhecemos, mesmo que seja o pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros e a precisar duma reforma urgente.
As redes sociais terão certamente aqui o seu papel. Pessoalmente sou da opinião que tal não será um papel criador mas apenas potenciador, como será próprio duma lente que amplia uma realidade já existente. Mas o facto é que a ascensão de propostas políticas alicerçadas em mensagens extremadas e culturalmente bélicas, de que são exemplos o populismo à direita e o identitarismo à esquerda, surge como mais um reflexo dum contexto social que acaba por pulverizar princípios basilares da vida em sociedades não autoritárias, como a solidariedade geracional ou os princípios que regem a atividade dos media, só para referir dois exemplos paradigmáticos e que merecem uma atenção mais cuidada.
À laia de declaração de interesses sou pela mudança e não por quem quer que tudo mude para que tudo fique na mesma. Estou com os que pretendem a construção de um mundo mais justo, de rosto mais humano, com pessoas acima dos negócios e povos acima das multinacionais. Em que a riqueza de um hemisfério não implique a pobreza do outro e que a etnia, o género ou a orientação sexual não nos limitem. Em que a história, e as respetivas narrativas, sejam mais internacionalistas e menos patrioteiras. Em que se possa respirar sem máscara e mergulhar nos rios. Em que as fronteiras não sejam assim tão importantes e a ciência e o saber sejam mais valorizados do que crenças em amigos imaginários.
Acresce que gosto da ideia de revolução e se entrasse numa máquina do tempo carregaria sem pestanejar no botão referente a 25-04-1974. Mas se não tenho dúvidas sobre o lado que apoio e o mundo que quero deixar para os meus filhos, porque coloco tantas reticências ao que vejo fazer por quem (pelo menos aparentemente) pretende o mesmo que eu, ao ponto de legitimamente questionar se querem, de facto, o mesmo que eu?
Mas regressemos aos media e à guerra geracional, ou melhor, ao controlo dos media e ao promover duma guerra geracional, como meios para atingir um mundo melhor, tudo alicerçado numa cultura que se diz progressista e que visa construir um mundo melhor através… da intolerância.
“Ok Boomer” e “Peste Grisalha” – Muito mais é o que os une que aquilo que os separa?
Voltemos aos tempos da troika e do governo que aferia o seu sucesso pela capacidade em a ultrapassar tal triunvirato… Pela direita.
Corriam os primeiros dias do ano da (des)graça de 2013 quando, nas páginas do jornal i, o deputado do PSD Carlos Peixoto defendeu que “a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha“, um inconveniente em termos de despesas com saúde e pensões de reforma. Em abono da verdade a expressão não era de sua autoria, podendo ser encontrada em estudos académicos sobre o tema. Mas a polémica estava lançada e teve repercussões que se prolongaram até 2018, quando o tribunal europeu reverteu a decisão de um tribunal português que no entretanto condenara um anónimo cidadão que num blog deu largas à sua indignação para com o deputado, que por sua vez se considerou ofendido. Conclusão: O estado português viu-se condenado a pagar uma indemnização ao cidadão condenado em Portugal, mas ilibado na Europa. Todo um clássico da tradição portuguesa condensado num único episódio.
Salto no tempo e no espaço. Parlamento da Nova Zelândia, novembro de 2019. Chlöe Swarbrick, jovem deputada do Partido Verde local, discursava sobre alterações climáticas quando interrompeu momentaneamente a sua intervenção com um “ok, boomer” dirigido a um deputado, bem menos jovem e eleito por outro partido, que a contrariava no costumeiro jogo parlamentar. Tal como no caso do deputado português, a expressão não foi uma criação de deputada. A mesma terá surgido no TikTok (para quem não sabe, uma aplicação popular entre os mais jovens para criação e partilha de vídeos), como resposta a um áudio em que alguém se referia às gerações “Millennials” e “Z” (para quem não sabe, nascidos, mais coisa menos coisa, respetivamente a partir de 1977 e 1996) como padecendo do “síndrome de Peter Pan”. A resposta surgiu sob a forma do OK boomer. Uma espécie de “Ok… agora que o velho já disse o disparate da praxe, continuemos”, tendo a expressão inspirado músicas e linhas de merchandising bem lucrativas, prova provada que mesmo as gerações mais idealistas não estão imunes ao apelo do empreendedorismo!
E assim surgiu a guerra mais ridícula e ignorante da atualidade, que promete ultrapassar o habitual e até saudável conflito de gerações: de um lado a geração que veio ao mundo a partir de 1996, a “Geração Z”, do outro os “Boomers”, os nascidos nos pós II Guerra Mundial. Os primeiros a acusarem os segundos de recusa da mudança e falta de abertura para a novidade, quer seja em termos tecnológicos quer de igualdade e liberdade. Enfim, gente que não se deve tolerar em prol da igualdade, liberdade e da tolerância… Os segundos a acusarem os primeiros de nunca terem feito sacrifícios na vida e que, por esse motivo, os seus objetivos e perspetivas de futuro são irrealistas e utópicas. Enfim, gente a quem não se deve dar muita importância, pois o que será o futuro estará melhor entregue nas mãos de quem… Nem o irá vivenciar.
Os “Z’s” parecem ignorar que os Boomers protagonizaram a maior revolução sexual e de costumes e o mais contundente movimento antiguerra de que há memória, numa prova que o ensino da História faz muita falta. E caros “Z’s” e “Millennials”, permitam-me um aparte para avisar que nem no campeonato da geração mais freak os vão conseguir destronar. É que o vosso alinhamento das chacras em comunhão com a natureza (tudo documentado em selfies obtidas com um aparelhómetro munido de bateria de lítio), nunca se poderá equiparar à tentativa de fazer levitar o edifício do pentágono com o objetivo de pôr fim à guerra – é verdade, os boomers alinharam nessa, enquanto entoavam cânticos tibetanos…
Já os “boomers” parecem ignorar que aquilo a que aspiraram, e em muitos casos conquistaram, seria considerado irrealistas e utópico pelas gerações que os antecederam, enquanto colocam em causa os alertas emitidos pela comunidade científica para a necessidade premente de alterar de forma radical o nosso modo de vida (estão a ver, os cientistas, aqueles indivíduos cujas descobertas permitem, por exemplo, que desfrutem duma vida mais longa e com mais qualidade…). Para aumentar o nível de ridículo envolvendo toda a questão, surgiram já acusações por parte dos “Z’s” de “apropriação cultural” da expressão Ok boomer por parte da geração que os antecedeu, os Millennials…
E eu, que não dou grande importância à necessidade de catalogar os outros, mas que fui recentemente elucidado por um especialista que faz dinheiro com esta voragem de colocar um rótulo nas pessoas que permita sacar padrões de consumo consoante o anos em que nasceram, fiquei a saber que sou mais do que um membro da Geração X (1965-1976, mais coisa, menos coisa): sou um “cusper”, ou seja, alguém cuja data de nascimento lhe permite ser “empático” com duas gerações. Segundo o especialista, uma mais-valia!
Não sei se tal é uma mais-valia, mas confesso que olho com mais apreensão para a censura e a exclusão promovida pelos mais novos do que para o conservadorismo e resistência à mudança dos menos jovens. E a preocupação aumenta na medida em que se observa o aproveitamento que os que estarão no meio fazem das ideias dessa geração. Assistir às piruetas argumentativas e de valores de quem se indignou contra o deputado da peste grisalha e aplaude a deputada do Ok boomer, chega a ser pungente. Por muito que a coerência seja um valor fora de moda.
A divisão entre novos e velhos, sector público e privado, nacionais e migrantes, brancos e pretos, crentes no amigo imaginário x e amigo imaginário y, entre outros eteceteras, tem sido uma arma utilizada com particular acutilância por quem quer que tudo mude para que tudo fique na mesma.
Quando num tempo que muitos apontam como adequado à visão do reciclado guru intelectual da chamada “nova esquerda”, Antonio Gramsci, quando este defendeu que é precisamente entre o morrer do velho mundo e o nascimento do novo que se levantam os monstros, ver que tais monstruosidades não são apenas os erguidas pelo estertor do mundo que definha mas também, e em grande parte, por quem se diz agente do novo mundo, faz-nos questionar sobre as verdadeiras intenções dos parteiros de serviço.
Imprensa livre… de divulgar o meu pensamento e omitir o do outro
Sem entrar em análises profundas, e apesar da crise perpétua dos media e dos vários adventos que têm vindo a influenciar a sua atividade, os mesmos não poderiam ficar imunes à guerra da comunicação, da palavra, da novilíngua, da narrativa e da hegemonia cultural. Tal seria impossível. E também aqui os monstros que se levantam parecem povoar ambos os lados da barricada, no que será particularmente gravoso quando identificamos entre os danos colaterais princípios que, apesar da tendência ideológica observável em cada OCS, asseguram que os mesmos cumprem os mínimos que os distinguem do jornal da junta de freguesia ou do órgão oficial do um qualquer partido político ou clube desportivo.
A lista de problemas do sector seria extensa. Exaustivamente maçadora mesmo para quem não se move no meio. Toda uma temática que, por si só, daria pano para mangas que aqui não cabem. Mas centremo-nos no seguinte: Será que se aos problemas do sector acrescentarmos a intenção que o profissional de jornalismo esqueça as regras pela qual deverá reger a sua atividade em prol da nossa visão do que será um mundo melhor, estaremos a auxiliar na resolução do problema ou ao contribuir para o seu agravamento?
A título de exemplo, observe-se o que sucede quando um qualquer OCS pública, ou melhor, se atreve a publicar, algo menos laudatório sobre a jovem ativista ambiental Greta Thunberg. Mesmo que seja completamente fundamentado, cumpra todas as regras de contraditório e imparcialidade, verdade, precisão e fontes consultadas, mesmo que nas anteriores abordagens do tema não tenha colocado cientistas e “outros opinadores” em pé de igualdade ou mesmo quando anteriormente tenha equiparado os “denials” das alterações climáticas aos adeptos da teoria da terra plana, o que se observará é que isso não chega, e o melhor será preparar-se para a “reação”, num fenómeno que os anglo-saxónicos denominam como backlash.
O termo “reação” é meu e tem em Portugal conotações associadas ao pós-25 de abril, pelo que o melhor será mesmo analisar a coisa na língua em que nasceu e onde terá surgido em associação a atitudes reacionárias que se oponham a movimentos culturais ou de justiça social, sentido particularmente incrementado com a publicação em 1991 do livro da jornalista e feminista norte-americana Susan Faludi, “Backlash: The Undeclared War Against American Women”, título que não mereceu edição em Portugal, o que até nos poderia ajudar… Teve todavia honras de edição no outro lado do atlântico, tendo o editor brasileiro optado por manter a expressão original em título, traduzindo o sub-título “O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres”. Conclusão: é melhor consultar os dicionários… E segundo o dicionário online Inglês-Português da Porto Editora teremos para a língua de Camões algo como “reação adversa; revolta; movimento de resistência”. Já segundo o Cambridge Dictionary, temos, e numa tradução livre deste vosso humilde servidor, que tal conceito corresponderá a “um forte sentimento percecionado por um determinado grupo de pessoas em reação a algo, como mudanças ou eventos sociais e políticos”. Nem de propósito o dicionário de referência na língua de Shakespeare, dá o seguinte exemplo de utilização do termo: the 60s backlash against bourgeois materialism (estão a ver Geração Z – Os boomers reagiram contra o “materialismo burguês”…).
Em ambos os dicionários de referência o termo é assim associado a reações de um “grupo de pessoas”, um “movimento de resistência”. E mais uma vez, tal como no caso da guerra geracional mais parva a que o mundo ocidental já assistiu, também aqui me confesso mais preocupado com a reação do “movimento”, formal ou informal, espontâneo ou organizado, de quem se diz pugnar por um mundo melhor, do que pelas reações deixadas na caixa de comentários de um qualquer tabloide que promova a informação-espetáculo na busca incessante pelo clickbait, e que em muitas análises aparecem indelevelmente associados à ascensão da extrema-direita. Aliás, o facto de o termo ter “evoluído” de forma a deixar cair o seu pendor eminentemente conservador e reacionário alargando o seu âmbito, será certamente sintomático, e preocupante, em todo este contexto.
A dificuldade em traçar uma linha que separe ambos os grupos e ambas as práticas não pode deixar de ser considerada preocupante, e George Orwell deve dar voltas no túmulo ao constatar que as práticas da sua distopia, novilíngua incluída, servem cada vez mais como manual de instruções para uma espécie de “nova ordem” cujo alguns dos principais protagonistas se afirmam do lado da construção de um mundo sem big brothers… Ou duma “terra sem amos”…
Cultura woke. Ou quando se acorda ainda antes do passado que ser quer combater…
Woke, pretérito perfeito do verbo acordar. Simple past do verbo “to wake”, que no dinamismo da língua inglesa falada nos EUA evoluiu para a forma de adjetivo próprio da tomada de consciência relativamente a questões sociais. A expressão “stay woke” (permanece desperto) nasceu na comunidade negra norte-americana e identificava os “despertos” para as questões raciais. Não admira assim que o movimento Black Lives Matter o tivesse aproveitado. O hashtag #staywoke popularizou-se nas redes sociais e a expressão acabou mesmo por dar nome ao auto-intitulado The Black Lives Matter Movement Documentary, um documentário datado de 2016, com o subtítulo “A alvorada duma nova revolução”.
Mas o uso da expressão não ficou pela questão racial e rapidamente se alastrou para outras causas e para a tomada de consciência no seio das mesmas. Feministas e ativistas dos direitos LGBT também a adoptaram, reivindicando o seu espaço na tal nova revolução que vem já aí. Uma espécie de subcultura que, como não poderia deixar de ser, para além dos ativistas atraiu públicos mais jovens e familiarizados com tecnologias.
O que poderia correr mal em tal sub-cultura alicerçada em tão meritórios valores? O que correu mal é que a capacidade de atração só encontrou paralelo com a capacidade de repulsão. Entre o estado de vigília de quem estaria desperto para as causas, a uma atividade e comportamento mais próximo de um grupo de “vigilantes” das ideias e da palavra, foi um pequeno passo que terá causado o afastamento de quem não vive enclausurado nas respetivas bolhas… Um comportamento típico neste contexto será a colagem de quem não concorda com as visões deste “ativismo enclausurado” ao que se pretende combater, fazendo assim com que racistas, homofóbicos e fascistas se multiplicam por mil numa visão fechada que acaba por encontrar paralelo no “se não estão connosco estão contra nós” proferido por George W Bush num célebre discurso em que se dirigiu a outros países no contexto do combate ao terrorismo.
Recentemente Barack Obama e o músico australiano Nick Cave desferiram alguns golpes nos princípios que caracterizam esta sub-cultura, golpes particularmente incisivos quando vêm do primeiro presidente negro da história dos EUA, pelo qual o mundo suspira sempre que o seu sucessor Donald Trump entra pelos ecrãs de tv adentro (uma espécie de fenómeno Cavaco-Marcelo, só que ao contrário…), e de um músico de excepção que, apesar de se mover na chamada música independente, logrou furar as fronteiras do nicho de mercado onde se celebrizou, sem nunca se converter aos mecanismos de mercado, graças à qualidade das suas criações.
Cave foi mais filosófico. Como tinha de ser. Defendeu que a ausência de dogmas constitui um excelente princípio para a criação musical e para a vida em geral, confessando-se desconfortável perante ideologias que se identificam como “a verdade”, onde identificou religiões e… a cultura woke com a sua supressão de sistemas de pensamento contrários “independentemente das intenções virtuosas de muitas questões”. Uma espécie de dogma de fé progressista, uma contradição nos termos.
Obama foi mais pragmático, tendo inclusive muitos analistas identificado nas críticas efetuadas à cultura woke e às práticas associadas à mesma, “recados” para dentro do seu partido e para o julgamento moral a que parecem estar sujeitos muitos dos que se têm perfilado como candidatos a enfrentar Trump nas próximas eleições (e que não se chamem Bernie Sanders…).
E, de facto, depois de desistências à corrida baseadas em “falhas” como a utilização da expressão “estrangeiro ilegal”, ou a guerra de estimação a que parece dedicada a congressista estrela do partido democrata Alexandria Ocasio-Cortez, em relação ao candidato Pete Buttigieg, que terá cometido pecados capitais como uma angariação de fundos numa cave de vinhos, Obama efetuou alguns interregnos à parcimónia com que tem pautado as suas aparições e intervenções. E assim, numa interessante reviravolta da história, eis que é o primeiro presidente negro da história dos EUA quem toma certa dianteira no combate à cultura cuja terminologia identificativa surgiu no seio do movimento Black Lives Matter.
Em outubro do ano recém terminado, numa intervenção enquadrada na temática “ativismo jovem” realizada numa cimeira da fundação com o seu nome, o ex-presidente norte-americano lançou alertas contra quem atira pedras e procura falhas na pureza dos princípios dos outros como arma política de eleição. Aliás, poucos meses antes, tinha defendido a mesma ideia quando afirmou: “uma das minhas preocupações com os progressistas nos EUA, e que talvez seja verdade também aqui, tem a ver com um certo tipo de rigidez (…) Se nos dedicamos a promover testes de pureza, vamos acabar com um partido tão pequeno que será impossível vencer. Governar não pode ser “se não concordas comigo estás fora da conversa”». Estas declarações foram proferidas perante uma plateia constituída por jovens potenciais líderes políticos do futuro, reunida em Berlim, cidade onde o muro que dividiu o mundo foi derrubado no já longínquo ano de 1989 e quando muitos boomers seriam mulheres e homens de meia-idade. Agora que a rigidez e a recusa do contraditório, nas ideias, na política e sociedade, fazem antever a construção de outros muros ou o renascer de conceitos que constituíram um monumental e criminoso fracasso como o “homem novo”, talvez não fosse má ideia as forças (ditas) progressistas trocarem umas ideias sobre o assunto…
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