O que é essa criança que baila em mim?
Carrego esse corpo curvado de batalhas, a pele marcada por oitenta primaveras e no entanto, esse eterno encanto. Esse constante arrufar de pomba virgem no peito.
Vejo os moços passarem com seus olhares sonhadores e seus bigodes imponentes, a tez brilhando que nem moeda recém cunhada e penso:
“Ah, esses me beijariam os pés se me vissem aos vinte, aos trinta, aos quarenta anos…”
É, fui sábia em fazer-me amada. Embora tenha amado pouco.
Talvez por isso essa inquietação de menina em noite de baile. Por isso essa valsa eterna conduzindo o coração, essa fluidez de anjo nesse corpo tão… reticente…
Sim. Coloquemos assim, pois generosidade é mãe materna a acalentar o leito dos sábios. E eu sempre fui generosa comigo.
A vida bem que tentou, mas não conseguiu me amargar. E eu lá sou leite mal ordenhado pra talhar com qualquer hálito? Não…
Deixo a dissonância dos atos se perder junto com a incontinência do corpo. Prefiro me concentrar nos acertos felizes e nos deliciosos desastres que provoquei em mim e nos outros.
Dizem que carrego nos olhos dez toneladas de sonhos. E que esses sonhos se esparramam no colo dos passantes de toda a Riviera. Mas isso é generosidade de poeta ou agrado exagerado de neto. Não lembro bem.
Mas o que importa? Na minha idade datas e nomes vão perdendo a importância. Guarda-se apenas o essencial:
O primeiro tremular de lábios antes do beijo, o olhar do amado que te pede em silêncio que lhe perpetue a espécie, a estupefação do amante, o afago sem malícias do marido.
É. Na minha idade a mente vira um um mosaico de ovulações, suspiros e alguns pouquíssimos medos.
Tabelinha existencial, sabe? Terça e quinta posso ser feliz. Na sexta ou aos 25 eu me caso. Aos 30 vou amar de verdade. Aos 40 vou me deixar ser amada. Aos 60 me aposento de tudo e aprendo a engatinhar de novo.
Que coisa. A mulher leva a vida inteira em ciclos. Recortes de luas e uivos, suspiros maternais e arranhões passionais. Quem nunca? Eu vivi de tudo.
E agora me olha discreto o mundo. Esse mesmo homem que antes me seduzia com ferocidade de infante indo pra guerra, hoje me diz em gentilezas que o meu turno acabou.
E eu? Eu acolho, pois sou uma dama. E o mundo, esse moço tão dono do tempo, sempre foi cavalheiro comigo. Me olhou com olhares de encanto por cada esquina que dobrei.
Beleza não se lamenta e a minha sempre foi de tirar o chapéu.
O que mais uma mulher pode querer do que ver a cidade inteira se emocionando só por ela por as fuças na rua?
Eu nunca reclamei. Costurei todos os olhares e elogios em um pedaço de cetim e fiz um escapulário só pra mim. Não se trata de vaidades não. É só intimidade minha com Deus. Ele entende.
Por isso, sempre que algo me desagrada ou muito me agrada como esses dois rapazes para quem agora sirvo chá tão discreta e silenciosa quanto um aparador eu roço os dedos na bolsa de cetim que trago no peito. É mágica na certa. Cheiros e promessas voltam a exalar do meu seio agora repousado de terminações nervosas. E a crianca, essa coisa que mora em mim volta a rodopiar em minhas órbitas cansadas. Como eu vivi!
É, gratidão é acalanto bom no leito dos sábios.
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