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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Seis filmes para refletir sobre a identidade nacional

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Não se trata de uma lista dos melhores ou mais representativos filmes nacionais. Trata-se, sim, de sugerir bons filmes que falam sobre a alma sobretudo dos trabalhadores brasileiros.

Neste momento, mais do que nunca, há uma grande importância política em conhecer, compreender e, desta forma, respeitar nossa identidade nacional. É importante porque um projeto de nação que se preze nasce do profundo conhecimento e intimidade com o assunto.

Falar em um projeto de nação pode parecer uma ideia distante, fora do nosso alcance, pretensiosa até. Mas, quando entendemos essa ideia, grande e genérica, como um projeto pelo qual humildemente nos orientamos, ela parece mais próxima. Dito de outra forma: este projeto é construído tijolo a tijolo. Trabalhamos em tijolos com a perspectiva de uma casa.

Parte fundamental desta construção, a cultura nacional, desprezada nas mãos de um governo autoritário como o de Jair Bolsonaro, que exalta as piores formas de imperialismo cultural norte-americano, nos ajuda a conhecer nossa própria identidade social e coletiva.

Sob essa perspectiva, proponho aqui uma relação de seis filmes brasileiros, lançados entre 1959 e 2012. Não se trata de uma lista dos melhores ou mais representativos filmes nacionais. Trata-se, sim, de sugerir bons filmes, alguns desconhecidos do grande público, alguns esquecidos, que falam sobre a alma sobretudo dos trabalhadores brasileiros.

 

 

Jeca Tatu

Lançamento: 1959
Direção: Milton Amaral
Elenco: Amácio Mazzaropi, Roberto Duval, Agnaldo Rayol, Cely Campello

Jeca Tatu é o estereótipo da origem do povo paulista. Sua história mostra as relações que se estabeleceram na zona rural de São Paulo, entre imigrantes, donos de terras e o caipira. E também com o mundo urbano que crescia.

No filme, Jeca Tatu é um bicho do mato, um caipira preguiçoso e simplório que vive na zona rural do interior paulista. Ignorante e ingênuo, Jeca, na interpretação singular de Mazzaropi, salda dívidas na mercearia dos “italianos” com pedaços de sua terra.

Mas, assim como em geral acontece com o povo pobre do meio rural, Jeca é forçado a deixar sua terra, com a família, e seguir de carroça em busca de sobrevivência. Eles se destinam a São Paulo que, naquela época, já tinha os contornos de uma cidade grande. Beneficiada pela economia do café, a capital vivera intenso processo de urbanização que a elevou ao posto de maior centro urbano brasileiro. E nela ocorre o confronto da cultura caipira e a urbanização.

De forma bem-humorada e irônica, o filme mostra os males das relações de colonato e coronelismo que marcaram a zona rural brasileira na década de 1950. E insinua que, na cidade grande, as pessoas “urbanizadas” se aproveitavam para “crescer” em cima do atraso e da desigualdade que permeava todas as relações.

O personagem de Monteiro Lobato incomodou a elite intelectual de sua época, acostumada a uma visão romântica do homem do campo. Jeca Tatu representa o trabalhador rural paulista abandonado pelos poderes públicos, vivendo nas doenças, no atraso e na indigência.

Entretanto o personagem “evoluiu” na obra de Lobato acompanhando a evolução das campanhas sanitaristas. Ele, que surgiu como atrasado e inadaptável ao meio urbano, com o tempo se transformou em um novo símbolo de brasilidade. Um símbolo assimilado e reinventado por Amácio Mazzaropi.

Diz-se que Monteiro Lobato estigmatizou o caipira tomando-o como paradigma. Mas o Jeca de Mazzaropi tem outra influência, a do caipira “branco”, com ascendência italiana. E retrata o trabalhador rural ingênuo do estado de São Paulo.

Mazzaropi é um dos maiores símbolos da cultura paulista. Da cultura de um povo do interior, autônomo, isolado e sacrificado pelo progresso avassalador da metrópole. Ele extrai humor de situações tristes. Brinca com o realismo, propondo uma visão singela, imediata e material dos fatos.

 

 

São Paulo Sociedade Anônima

Lançamento: 1965
Direção: Luís Sérgio Person
Elenco: Walmor Chagas, Eva Wilma, Darlene Glória, Otello Zeloni, Etty Fraser, Sérgio Hingst

A instalação de indústrias automobilísticas estrangeiras no Brasil na euforia desenvolvimentista, no final dos anos 1950, trouxe grandes mudanças na sociedade e na organização do trabalho.

Em São Paulo S.A., Carlos, um jovem da classe média paulistana, começa a trabalhar numa grande empresa e ascende na profissão, tornando-se gerente em uma fábrica de autopeças, da qual se torna gerente. Seu patrão é um típico burguês cínico, sonegador de impostos, que sustenta um discurso conservador e que, por outro lado, não respeita nem sua própria família.

Perambulando pela represa Guarapiranga, praia de São Vicente, interior e centro de São Paulo, ou pela fábrica da Volkswagen na beira da Rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP), Carlos pode ser visto como o protótipo do profissional de classe média que busca “vencer na vida”.

O filme retrata o começo do sonho do “Brasil Grande”, do desenvolvimento vivido sob Juscelino Kubitschek (entre 1957 e1961), depois aprofundado pela ditadura de 1964, com base no arrocho salarial, no desprezo aos direitos dos trabalhadores e na rendição às imposições do capital estrangeiro.

Embora bem-sucedido, Carlos dá sinais de que entende que aquela riqueza material é vazia de sentido se for desprovida de aspirações mais profundas nessa vida. Em diversos momentos, ele parece ser um mero espectador da própria vida. Sem um projeto de vida ou perspectivas para escapar da condição que rejeita, só lhe resta fugir.

 

 

Boleiros – Era Uma Vez o Futebol

Lançamento: 1998
Direção: Ugo Giorgetti
Elenco: Rogério Cardoso, Adriano Stuart, Flávio Migliaccio, Lima Duarte, Otávio Augusto, Cassio Gabus Mendes, Marisa Orth, Denise Fraga, João Acaiabe, André Abujamra, Elias Andreato

Boleiros é um filme que fala de vidas ligadas ao futebol: o jogador, o técnico, o juiz, o empresário de atletas, as esposas, os torcedores, além dos saudosistas e dos amantes desta arte.

Num típico boteco paulistano, decorado com fotos de jogadores, seis amigos, profissionais e ex-profissionais do futebol, costumam manter longos papos e recordar velhos tempos. Cada observação remete a um folclore. Papo de bar. Casos pitorescos, lances e vinhetas ilustram a conversa.

O filme marca uma época em que o futebol assistiu a um processo de espetacularização. Mesmo que no campo sociocultural este esporte sempre tenha representado um espetáculo, na década de 1990 houve uma explosão de comércio de bons jogadores, fabricação de celebridades do futebol, associação deles a grandes marcas, salários estratosféricos – enfim, um esgotamento comercial e midiático de times e jogadores.

Esse glamour não atingiu, entretanto, futebolistas de clubes menores, que representam mais de 90% dos profissionais, que ralam por baixos salários e vivem em grandes dificuldades.

O que o filme não diz é que, como a maioria das profissões, os futebolistas também têm representação sindical para defender suas reivindicações. No Brasil, o primeiro sindicato dos jogadores de futebol foi criado em 30 de junho de 1939, no Rio de Janeiro. Atualmente, as mulheres também têm ascendido à realização da profissão de futebolista em categoria exclusiva ao seu gênero.

A alegria de Boleiros é que ele pode se deleitar na certeza de que nada disso ofusca o brilho do esporte. Em sua lógica própria, o futebol tem demonstrado que é, do “verbo ser”, sonho e arte.

 

 

Vaidade

Lançamento: 2003
Direção: Fabiano Maciel
Elenco: Simara

O documentário Vaidade fala de um tipo de trabalho comum, mas fora dos padrões. Um jeito alternativo e informal de ingressar no mercado de trabalho: revender cosméticos de porta em porta.

Vaidade retrata, com charme, histórias de mulheres revendedoras de cosméticos na Amazônia. O filme não entra nos meandros escusos da economia das grandes empresas de cosméticos. Seu enfoque é o dinamismo deste comércio no norte profundo do Brasil. Fiel ao tema da beleza, o documentário tem uma fotografia caprichada e uma leitura estética da forma e do gestual das mulheres que vivem da perfumaria.

A escolha da região amazônica não se dá por sua distância inerente ou pelo seu isolamento encantado. Ao contrário, falar da venda de cosméticos na Amazônia é trazer à luz o crescimento exponencial desta economia, o sucesso nas vendas e a dedicação de seus comerciantes. A atividade é tão expressiva na região que pode passar de geração a geração. E esses produtos vão de grandes marcas, como a Avon, a Natura e o Boticário, até a fabricação caseira, beneficiada pela rica oferta local de produtos naturais.

Em comum, as revendedoras têm a vaidade e a necessidade de complementar o sustento das famílias. Para trabalhar, elas enfrentam dificuldades de locomoção, atravessam rios e estradas e desafiam os perigos da selva. As vendas só se realizam depois de muita caminhada.

O caso da Amazônia é um exemplo da ferocidade com que o Brasil entra de cabeça quando o assunto é se embelezar. Em 2009, por exemplo, o País se tornou o maior mercado e o maior exército de revendedoras da Avon no mundo, desbancando a liderança dos Estados Unidos. Se por um lado a atividade confere sensação de autonomia e empreendedorismo, por outro esconde os ganhos baixos e a total ausência de assistência às trabalhadoras.

E é neste contexto de negligência do Estado e do mercado formal que essas mulheres buscam incrementar a renda de forma criativa, fazendo bonito do jeito que dá. Com sua fluidez, a perfumaria se infiltra nos cantos mais remotos do mundo, nos centros urbanos, passando, até onde só se chega por água, nos confins da floresta amazônica.

 

 

Oscar Niemeyer – A Vida é um Sopro

Lançamento: 2007
Direção: Fabiano Maciel
Elenco: Oscar Niemeyer, Chico Buarque de Holanda, Ferreira Gullar

Se conceitualmente o trabalho é a transformação da natureza, a arquitetura é uma de suas imagens mais emblemáticas.

Este outro documentário de Fabiano Maciel, mostra o lado criativo e prazeroso do trabalho. No filme, o já centenário Oscar Niemeyer (1907–2012), um dos melhores arquitetos do mundo, com mais de 800 obras, fala de seu trabalho com paixão e idealismo.

Os 90 minutos de A Vida é um Sopro mostram Niemeyer falando sobre sua vida, seu ideal de uma sociedade mais justa e sobre como ele concebeu seus principais projetos. Sua fala é entrecortada por imagens originais de construções de suas obras, além de imagens de suas obras e depoimentos de figuras importantes como José Saramago, Eric Hobsbawn, Nelson Pereira dos Santos, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony e Chico Buarque, entre outros.

Filmado entre 1998 e 2007, o filme discorre sobre a clareza das linhas, o pensamento social de Niemeyer e suas inovações culturais e arquitetônicas. Inicialmente, Niemeyer trabalhou com uma ideia tradicional de arquitetura, que apenas reproduzia, por meio do ensinamento das técnicas, o estilo existente. Influenciado por arquitetos que foram além dos limites da instrução formal, sobretudo Lucio Costa e Le Corbusier, ele percebeu que poderia inovar e transgredir as velhas fórmulas.

A construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (atual Palácio Gustavo Capanema), entre 1936 e 1945, no Rio de Janeiro, por um grupo de arquitetos liderado por Lucio Costa, do qual participou Oscar Niemeyer, foi uma das ações que marcou o início da nova arquitetura no Brasil. O edifício aproveitou o ambiente natural e reforçou a integração entre arquitetura, paisagismo e artes plásticas.

Amadurecido, Niemeyer exaltou a plasticidade das formas paisagísticas brasileiras, opondo-se à rígida linha reta do estilo internacional. O resultado foi uma arquitetura sinuosa, que brinca com as formas e com a fantasia. Sua primeira grande criação foi a capela da Pampulha, em Belo Horizonte. De Pampulha até hoje, passando pela construção de Brasília, sua arquitetura seguiu a mesma liberdade e inventividade plástica.

A elaboração do projeto e a construção de Brasília foram impulsionadas pelo entusiasmo do presidente Juscelino Kubitschek. Segundo Niemeyer, a ideia de JK era que Brasília fosse uma cidade atualizada e moderna, representando a importância do País. A capital foi inaugurada em 21 de abril de 1960 como uma monumental paisagem simbólica e surrealista. O espaço aberto para marchas e movimentos sociais em frente à Praça dos Três Poderes e ao Palácio do Planalto marcaram o idealismo de Niemeyer.

Entretanto, nos 21 anos em que a ditadura militar ocupou nosso país e a capital Brasília (1964 -1985), Niemeyer exilou-se no exterior. Lá fez algumas das suas melhores obras: a sede do Partido Comunista Francês, a Bolsa de Trabalho, em Bobigny, o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, a sede da Fata Engineering, em Turim, a Mondadori, em Milão, as universidades de Constantine e Argel, na Argélia.

Como ele próprio diz, sua arquitetura foi feita de coragem e idealismo. Mas este velho brasileiro ressalta que, a despeito de qualquer coisa, o importante é a vida, é buscar melhorar esse mundo injusto. Em suas palavras: as pessoas vão aprender que a vida é um sopro. Cada um vem, dá o seu recado e vai embora, as coisas desaparecem. O importante é a solidariedade, saber que estamos no mesmo barco.

 

 

Heleno

Lançamento: 2012
Direção: José Henrique Fonseca
Elenco: Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Othon Bastos, Herson Capri

Heleno de Freitas foi um controverso ídolo do futebol brasileiro da década de 1940. Os últimos anos do craque, mostrados em sua cinebiografia, revelam o peso de uma vida intensa e de uma dedicação irrestrita ao esporte, em uma época em que o futebol ainda não era um programa de televisão. Heleno não é produto de marketing. É um mito autêntico e pujante.

O formato refinado do filme exige paciência e concentração do espectador. O roteiro dilui o passado e o presente em um só momento, da maneira como se imagina que tenha ficado a percepção de Heleno quando ele se torna dominado pela sífilis.

Alheio ao mundo e às mudanças no futebol, o que dava sobrevida ao jogador em seu último ano de vida, 1959, eram as lembranças de suas glórias. Por isso o filme apela para a memória. Memória do Rio antigo. Memória romantizada de antigos craques. Saudade daquilo que poderia ter sido. Do sonho de ter podido mudar a história do Botafogo encerrado em um pênalti perdido.

Heleno é um filme feito de imagens e de nostalgia, como um álbum de fotos antigas. Mas sua elegância não esconde o drama de um homem que despenca do topo.


Texto em português do Brasil


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