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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Seis poemas de Caio Graco Maia

A poesia de Caio Graco Maia, jovem poeta baiano radicado em Aracaju, surpreende o leitor pela estranheza de seu vocabulário: o poeta retira as palavras de sua banalidade, de sua servidão ao dicionário, que as limita a apenas nomear ideias e coisas, e as transforma em paisagens musicais de um território semântico estrangeiro.

Lemos os seus poemas como se fossem escritos em outro idioma, ao mesmo tempo enigmático e luminoso, áspero e belo.

 

Ova

a Evaldo Rosa dos Santos

se à parte um hálito de iodo e ódio
o açoite ora conservar seu monte
a espera enturma com teu sangue

se no cristálico espinhal do cárcere
mais cresce a carne que o oiramento come
a espera enturma com teu sangue

se abris ou códices ou outra farsa
engorda o muco que sorveu teu nome
a espera enturma com teu sangue

se um coldre mouco noite noite espreita
gozar o turno de seu rabo insone
a espera enturma com teu sangue

não te irarias agora, negro, negra,
em rudo e belo tono, em soba, em bronze?
a espera enturma com teu sangue

 

 

Carrancas

com as sacas do ano, o medo
refaz seu curso em modorra.
já sem justeza, desova.

um anjo senhor da terra
vê e volca aquela cria;
mais de um brâmane cochicha.

a insônia com seu arquivo
não poupa um só ruído;
doge moço coça a pálpebra

ofertando morte-almíscar.
o abate o cervo ferve:
ira até roça, mordisca.

– onde as ventas, tosco dente
quente cólera e cabeça
que nos salvem destas bestas?

 

 

Uma balada de Chopin

São dois córregos;
um: caudilho.
em que não haja perda
para o tapeçário,
faz armário
forrado ou asilo
que se guarde a peça
à pele de algum filho
(mãe esquerda)

 

 

* * *

arrebenta sobre o muco,
dançante, um devenir;

e com seu rude cajado
revira beijo, cepas
e cada gozo ou álcali.

depois, em mesma dança,
do velho amor se livrado,

enterra uma nova chaga:
outro amor, que faz novo
o organismo encontrado.

– que arcano e desejabundo
é impermanente o corpo.

e reste certa a pilhagem,
por entre o dano e o ânus
adoecendo-o outro.

 

 

* * *

cervical o rio
poeta de nafta
que iça-se à terra
afta solar (os sóis
pululam boca
cactos terrais)
sabe à sequidão
de cunha água
outra, sem afogo.
a que férrico
espigão a rasgo
o solo inunda.
pastoril, esgana
e seca, ventila
e corta o rio
a própria carne
(labor falso
falsa aérea
água-razão):
branco curral
de um dicionário.

 

* * *

Na rede de pesca, encarnado um santo oscila. Vem e vai, põe e tira o posto corpo. Na côdea de gordura se comprime outro santo – menos movente, no entanto – atordoado à novidade de um escamado rosto. E bem ali, sob esta face ainda, aérea quase e horrível, uma hérnia a um terceiro santo faz visível. Este, tísico. O último santo olha para o primeiro, e embora sejam o mesmo se envergonha. Vendo-o debater-se inutilmente pensa que mais vale a escama à carne que sempre a outra carne torna. O primeiro, em posição inversa, para a crosta a definhar-se em defunta, pragueja e mesmo detesta a doença desta parte imunda.

Mais acima um cristo-gênio, meditando com o cardume, nota a empenhada sanha que suas partes assumem. “O ódio o santo e o peixe resume”. E de se aproximar um papa-breu, a bocaça uma bacante, ama as cinco mil filhas daquele humilde errante: “Com que gozo sua prole comeria este negrume!”.

 

Michel

A serpente. Sem o que dispo o corpo negro à parte disto: quente, e, no entanto negues, és.

Que dissestes abrir uma clareira.

Um curumim de fogo ateia fogo e abre uma clareira, para a ave que se possa à morte ser comida. Pois é de fogo a sorte a dar conta desta trama, parte lama, parte contagem ou coragem de povos à lama, de pele branca a anca e íris-lama.

Então serpente: convívio.

Convido para o charco. Estou perto e atento muito ao membro fraco. Ao membro conjugado ao corpo da ave murcha. E leio a mesma carne, a coxa, que frouxa de forcejos tanto; que vista ao rasgo azul traçado àquele manto santo, adoraria. Mas que de adorada assume ainda o lugar inverso.

Pois é desejo o charco em que estás imerso.

Em que encontro a ti o teu pescoço quente; em que, no entanto negues, abro a ferro uma clareira tua nuca, parte nunca, parte parte disto. Que não há fogo que se me recuse empréstimo ao lacerado ouvido. E em abrir por sobre as costas mais de uma gaiola, e em fazer entrar ali a tal serpente, como a erguer o novo decreto de teu grito, és ave, que se possa à morte ser comida.


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG   | Texto original em português do Brasil

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