Por mais de 50 anos, Euclides Coelho de Souza e Adair Chevonika de Souza, sua esposa (morta em 2013), fascinaram crianças e adultos do Brasil, América Latina e Europa com seu Teatro de Bonecos Dadá, que mesclava diversão e reflexão crítica. Neste meio século, realizaram mais de 200 espetáculos, onde se apresentaram cerca de 100 bonecos. Com isso, receberam numerosos prêmios nacionais e internacionais.
Uma síntese desse longo e fértil trabalho está no livro “Teatro de Bonecos Dadá – Memória e Resistência”, esmerada publicação que consumiu os últimos quatro anos de sua autora, Dinah Ribas Pinheiro, uma das mais influentes jornalistas do Paraná no setor da cultura. O projeto editorial – o livro tem formato retangular e 207 páginas – foi de Régine Ferrandis e a execução a cargo de seu irmão Pierre. O núcleo do livro é um abecedário mediante o qual é narrada a história da vida e do trabalho do casal de artistas, incluindo sua militância política comunista.
No entorno do abecedário, farta ilustração dessa trajetória. Entre as mais de 80 fotos de bonecos da publicação, o destaque fica com aquelas que mostram personagens das cinco peças que Dadá considera as mais importantes do seu longo percurso. Num segmento intitulado “Quem viu Dadá jamais esquece”, Dinah entrevistou quatro pessoas que conheceram as peças quando eram crianças. E não esqueceram delas. Mas o número das que fixaram os bonecos na memória é incontável.
Carioca criada em Urussanga (SC) e residindo e trabalhando em Curitiba desde 1969, Dinah Ribas Pinheiro confessa que “a escrita desse livro para mim não foi só um exercício jornalístico de retratar uma época e seus personagens. Foi também um afago na minha criança interna que conheceu o teatro do Dadá em 1974, assistiu a quase todas as peças do grupo, torceu pelos personagens injustiçados e teve a certeza de que o sonho, o encantamento e a inteligência podem caminhar juntas”. Em 2012, Dinah lançou “A viagem de Efigênia Rolin nas asas do peixe voador”, sobre a artista popular e contadora de histórias.
Da engenharia ao teatro
Nascido em Boa Vista, Roraima, em 1935, Euclides aportou em Curitiba em 1959, com a promessa feita aos pais de cursar engenharia. De fato, ingressou no curso da Universidade Federal do Paraná (UFPR), mas ali permaneceu apenas seis meses. O que o tocava mais fundo era mesmo a política e a arte. Assim, ligou-se ao Partido Comunista do Brasil, que na época usava a sigla PCB, tornando-se logo secretário de juventude.
A primeira incursão de Euclides no teatro foi na apresentação da peça “Pátria o Muerte”, escrita coletivamente no Rio de Janeiro e que celebrava a recente revolução cubana. “ Aqui em Curitiba encenávamos a peça sobre a carroceria de um caminhão, percorrendo os bairros da cidade”, recorda-se Dadá, cujo vigor na fala e nos gestos não revelam seus 85 anos de idade. “Daí passamos a escrever e representar peças”. O Brasil vivia, no início da década de 1960, extensa e profunda efervescência política e cultural.
Na apresentação do livro “O Brasil através dos bonecos”, José Ribamar Bessa Freire, professor de história na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), assegura que o teatro de bonecos criado por Dadá e Adair, em Curitiba, em 1964, possui em seus alicerces “o projeto audacioso do Centro Popular de Cultura (CPC) e da UNE Volante, Boal e o teatro do oprimido e a alfabetização popular de Paulo Freire”. Bessa é um dos poucos amigos sobreviventes que Euclides e Adair fizeram no exílio no Chile, Bolívia e Peru a que foram obrigados, entre 1969 e 1974, pelas perseguições da ditadura militar brasileira.
Apuro na técnica e na linguagem
Dadá e Adair sempre definiram a arte como “um instrumento de conscientização política, de formação e realização de sonhos pessoais”. Nas palavras de Bessa: “Para que o teatro possa ser transformador, é preciso dominar e refinar a técnica e aprimorar a linguagem, além de um conhecimento profundo da realidade que se quer mudar”.
Assim, o casal de artistas bebeu de várias fontes, desde o Teatro Tablado, de Maria Clara Machado e a Escolinha de Arte do Brasil, ambos no Rio de Janeiro, até o Teatro Kuklo, de Moscou. Aprenderam com Joel Barcelos e Gianni Ratto e com festivais internacionais que passaram a frequentar. Mas hoje Dadá confessa: “Aprendi com o público mais do que com cursos”.
E público não faltou. Primeiro voltado para adultos, depois para crianças e, por fim, para famílias, o Teatro de Bonecos Dadá apresentou peças de autores brasileiros, argentinos, mexicanos, peruanos, franceses e de outras nacionalidades, em praças, ruas, parques, feiras, sindicatos, quermesses, escolas, casas paroquiais, barracões, circos, garagens e onde mais houvesse espaço e público.
A peça inaugural foi “Dadá vence o diabo”, adaptação de peça homônima do mexicano Germán Arzubide, em que um patrão obriga crianças a trabalharem até o esgotamento, sob a ameaça de chamar o diabo. O demônio, de fato, aparece algumas vezes para assustar os trabalhadores mirins. Numa das aparições, uma das crianças avança com um porrete contra o demônio e, com a solidariedade do público infantil, dão-lhe uma surra até que a máscara do diabo caia, revelando a figura do patrão.
E seguiram dezenas de outras peças, sempre adaptadas às realidades locais, sempre estimulando a sensibilidade e a reflexão, sempre desmistificando relatos hegemônicos e açucarados. Uma das peças, por exemplo, a que durou mais tempo, mostrava um Chapeuzinho Vermelho agressor do meio ambiente porque colhia flores e caçava borboletas, enquanto o lobo perseguia a menina apenas por estar com fome. Ou “A nuvem apaixonada” que, desmanchando-se em chuva, faz renascer um jardim de uma criança destruído pela especulação imobiliária.
“Narrar é resistir”
Segundo José Ribamar Bessa Freire, “este é o sentido da narrativa do Teatro de Bonecos Dadá: decantar as lembranças para não deixar um vazio nesse pedaço de história. Como queria Guimarães Rosa: “narrar é resistir”. E fomentar a sensibilidade. Comunista de quatro costados, Dadá costuma dizer que, “um dia, um cara perguntou para o Lênin ‘como é que eu viro comunista’? E Lênin respondeu: ‘pela sensibilidade’. E o que a arte dá ao ser humano? Sensibilidade”.
por Luiz Manfredini, Jornalista e escritor. Nasceu, em 1950, em Curitiba, onde vive. É autor dos romances “As moças de Minas” e “Memória de neblina” | Texto original em português do Brasil
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