António Fonseca, este ator que pensa, e pensa bem como podemos perceber ao longo desta conversa, acaba a entrevista a dizer que se espanta por o poder, a governação, não se apropriar toda vaidosa deste projecto. E conclui que estamos mesmo muito mal se isto não acontecer.
E a verdade é que confrange ver como um trabalho destes não é logo assumido como um projecto público para ser mostrado a toda a gente, circular pelas escolas, por todas as escolas, da primária à universidades, ser um embaixador da nossa língua, desta língua única que transporta todas as culturas e olhares do mundo.
Parece que o poder, os poderes, preferem os galos de Barcelos e os Cacilheiros, desde que o invólucro seja modernaço e tenha muito impacto no social light que domina a nossa vida mais imediata.
Felizmente que ainda há loucos, e possivelmente um artista a sério é um louco, que têm coragem e resistência para tornarem reais projectos destes. Projectos que marcam uma carreira, uma vida, e que poderiam marcar um país.
Espero que ao lerem esta entrevista tenham o mesmo ou mais prazer que eu tive a fazê-la. Porque é de prazer que se trata, um prazer apimentado por muito conhecimento e por uma leitura aberta do mundo que, às vezes, nós portugueses somos capazes de fazer. E nessas alturas somos capazes de fazer avançar o mundo.
Tornado: Porque é que um ator embarca numa aventura tão louca como a de decorar os Lusíadas. O que é que te inspirou, a que missão ou promessa te obrigaste para te dar energia e força para esta performance única?
António Fonseca: Houve muitas razões para iniciar este trabalho à volta de Os Lusíadas. Vendo bem, decorre, naturalmente, da minha condição de ator, e da maneira como encaro o meu ofício, da maneira como encaro, nomeando de uma forma muito imprópria e simplista, a minha função social: ficcionar o Mundo e propor essa ficção aos meus concidadãos. Não sou um autor, sou um intérprete e como tal só posso reinventar as histórias que já foram inventadas e presentificá-las, aqui e agora, reescrevê-las. Reescrevê-las para mim é sempre inscrevê-las no corpo e na fala, mudando-lhes o código: da escrita para a oralidade, que sendo o meio mais antigo da ficção, é aquele que parece perdido e que faz um esforço por renascer em alguns contadores, excelentes, em que frequentemente tropeço.
Por outro lado, e este aspeto é de certeza uma ideia muito antiga em mim, diria mesmo anterior à minha opção profissional, a literatura portuguesa, o repositório da nossa ficção colectiva, está muito maltratada na escola, reduzida a objecto de análise e pretexto para o estudo das funções da linguagem e escrita, desde a primária até à universidade. O lado verdadeiramente artístico, metafórico, lúdico, de sonho, de viagem …. Não é minimamente abordado na escola. Basta pensarmos neste facto: um professor de Português passa anos a preparar-se para a profissão, tem dezenas de horas de estudo de semiótica, linguística…. Enfim!, e não tem sequer uma hora, no plano de estudos, para experimentar e dominar os processos da oralidade em qualquer contexto, muito menos o da comunicação de uma história ou de um poema.
Quando uma criança aprende a ler, já tem 5/6 anos de oralidade, parece evidente que antes de entrar pela gramática, o Pessoa ou o Camões lhe deveria entrar pelos ouvidos. Parece evidente que a porta de entrada da paixão pelas histórias, pela poesia, pelo artifício da linguagem seria a oralidade, com a aproximação à sua experiência de vida, paixão essa que só poderia crescer com o reconhecimento e domínio dos processos estilísticos. Isto não é de todo o que se passa. Mais: nunca se volta lá ou porque o programa não prevê, ou porque a paixão já morreu.
Quando comecei este trabalho, propositadamente mas também porque não tinha tempo para tudo, recusei-me a ler qualquer estudo, interpretação, comentário dos especialistas da obra.
Passados 3 anos, devo acrescentar que demorei 4 a dizer Os Lusíadas pela primeira vez, deparei-me com esta afirmação do António José Saraiva:
Um velho preconceito tornou Os Lusíadas apanágio dos eruditos e das escolas; mas há no Poema uma oralidade viva, um sabor da palavra gostosa que é própria dos bardos, aedos, dos jograis, dos Antónios Aleixos que nos restam. É um livro para ser entoado por recitadores, e não analisado por gramáticos. Por vezes interessa pouco o que ele diz, e vale só a língua sonora que percorre os vários graus da escala, uma palavra que esplende, um som rouco de queixa ou um gesto teatral que se entrevê. Por vezes, também, é um brinco meio irónico com palavras que se repetem ou opõem, como os poetas sempre gostaram de fazer diante dos seus auditores, que só são perfeitos e cabais quando se embebem como crianças no fluir das palavras e nos seus inesperados efeitos.
Passados cerca de 5 anos li uma entrevista de Tom Earle em que ele dizia, em resumo o seguinte:
Pusemos Camões num rochedo, como Adamastor. É preciso libertar Camões, ou seja, libertar o leitor de Camões, para que ele leia naquele texto o que quiser. Nós transformamos o poeta no rochedo…
Fiquei muito aliviado com tão doutas opiniões, porque nunca tive a intenção de fazer nada contra nenhum ponto de vista ou abordagem mas tão só acrescentar uma diferente.
De resto, e a talhe de foice, o único artigo que li, e reli, de análise da obra foi um estudo de Hélder Macedo saído no início dos anos 80 e reeditado recentemente. Não digo isto por presunção. Apenas para vincar o meu propósito neste trabalho, como já tinha sido de resto com o Sermão da Sexagésima do Padre António Vieira que decorei e falei dezenas de vezes: fazer a falação de uma obra que é dificílima de ler, que exige imensas competências, só ao alcance de alguns, mas que toda a gente pode ouvir/fruir. É como uma partitura de uma sinfonia de Beethoven: não são todos os músicos que a conseguem ler, mas qualquer pessoa pode deliciar-se a ouvi-la.
Agostinho da Silva fala de Camões e do futuro e que o capítulo 9º dos Lusíadas, a Ilha dos Amores, são já o futuro, o 5º Império. O que é para ti esta Ilha dos Amores?
Não tenho nenhuma opinião sobre essa afirmação de Agostinho da Silva, autor que muito prezo. Não sei nada do Quinto Império, nem do Quarto nem do Terceiro…Sobre a Ilha dos Amores sei que é uma grande invenção do Camões com ressonâncias noutras mitologias. Que, na volta da Índia, segundo o diário de viagem de Álvaro Velho, os portugueses foram perseguidos pelos indianos e árabes até às redondezas de Melinde, que aí foram agasalhados e bem tratados, que a maior parte deles havia mais de um ano que não comia decentemente frutas e legumes, que quase metade já tinha morrido, que necessitavam urgentemente de uma grande noitada para exorcizar o medo, que o pior já tinha passado e Lisboa estava perto, que o sonho da Índia vinha aprisionado numas amostras de canela e pimenta e nuns indianos que fizeram cativos, que agora podiam ter esperança de abraçar as mulheres e mães … a Ilha dos Amores é essa antecipação feita carne.
E é exactamente nesse momento da narrativa real que Camões insere a Ilha dos Amores e não deve ser por acaso que depois disso ele acaba a história gastando apenas mais 3 ou 4 estrofes para entrarem no Tejo ameno e cumprirem, como soldados que regressam, o que o poeta os fez sonhar na Ilha Namorada. Isto eu entendo mesmo sem ter nunca voltado da guerra colonial, de facto, mas apenas nos corpos de tantos amigos. O Quinto Império é uma abstracção, uma diletância respeitável e um bom tropos para outro tipo de abordagem que não é a que me interessa.
Disseste há uns tempos que a ” catadupa de mudanças políticas, sociais e, sobretudo, económicas a que vimos assistindo, exige-nos o reforço da nossa identidade individual e coletiva, das âncoras de cumplicidade que temos de ir buscar mais longe, fora da efemeridade do presente. De que forma os Lusíadas ajudam os portugueses a reforçar a identidade colectiva e a reinventar as âncoras de cumplicidade de que falas?
Quanto mais largo é o voo mais sentimos a necessidade do ninho, quanto mais longe da costa mais por ela ansiamos. O espaço expandiu desmesuradamente, não cresceu, nós é que fomos atirados para paragens que ainda há poucos anos só admitíamos como lugares de emigração para uma franja da população relativamente escassa e desfavorecida. Viver fora de portas é normal. Não é uma viagem que demora dois anos e se regressa. É um modo de vida. Precisamos de construir outros ninhos. Mais abrangentes, mais universais até porque a própria estrutura familiar, que sustentava os afetos da emigração dos anos sessenta já não é a mesma e os laços que hoje criam o sentimento de pertença, são muitas vezes os mesmos mas com uma inversão de importância no seu escalonamento. A língua, claro.
Já o próprio Camões o diz quando encontram Monçaide no canto VII, ouvem-no falar castelhano e ficam tão contentes….Que alegria não pode ser tamanha /Que achar gente vizinha em terra estranha. E não é só o lugar simbólico e real que Os Lusíadas ocupam em milhões de falantes. São também as referências de pensamento e culturais que a obra imprimiu no nosso pensar colectivo : desde os acontecimentos da história de Portugal, nomes, episódios…até formas de pensar o nosso tempo: vejamos as citações que os políticos e não só, fazem da obra, ou expressões codificadas que só referi-las é enunciar uma filosofia de vida: Velho do Restelo, Cabo das Tormenta, Esta é a ditosa pátria minha amada…São referências, que aliadas a outras mais mediáticas e atuais, como Benfica ou o Ronaldo, criam o referencial afectivo onde existem os ninhos.
Diversificar os materiais dessas referências, conjugar as mais consumíveis com as mais perenes, as mais atuais com as mais antigas, torna o ninho mais largo e sólido. A família deixou de ser o pai e a mãe e tornou-se um espaço físico, sem dúvida, mas também um espaço de referências culturais comuns, que partilho e me aquece fora da geografia. E estes laços não são os que menos precisamos de desenvolver no contexto da globalização, não para o isolamento mas para desenvolver saudavelmente a expansão.
Serão os Lusíadas um exemplo para mostrar a todos aqueles que defendem e querem refazer os muros e as fronteiras neste mundo onde a circulação e a troca de informação deveria ser cada vez mais livre. Porque os Lusíadas, como pensas, falam de uma aventura em que as paredes se romperam e os mares muito maiores que o Mediterrâneo, entraram de enxurrada num mundo que estava cartografado havia mais de mil anos.
Fiz há meses um espectáculo com o José Neves, o José Luís Ferreira, O Fernando Ribeiro, o Paulo Furtado e o Nuno Gama, só com texto de Os Lusíadas e que fará uma digressão no próximo trimestre a começar no final de Janeiro no Teatro Nacional e que se chama Força Humana.
O ponto de partida foi exactamente esse: Essa enxurrada, esse derrubamento de fronteiras, saído da Ocidental praia Lusitana teve um refluxo. Há uma contra onda que levou praticamente 500 anos a formar-se e que agora explode: é a África e a Ásia. E é muito curioso ver que nesta nova realidade, com o feitiço voltado contra o feiticeiro, o discurso de Camões se aplica tão bem á maneira como a Europa está a reagir a esta realidade e parecem discursos de políticos europeus e não só. Os Lusíadas, como todas as grandes obras, não são casuísticos nem normativos na sua letra. São isto e o contrário disto. Sempre que alguém insistiu em torná-los programáticos mutilou-os.
O que os percorre é a essência do humano, com as suas contradições. O Adamastor é um tipo feio como os trovões apaixonado por uma ninfa que nem um beijo lhe concede e ele vive a eternidade com este amor entalado. Dizem que é o símbolo dos perigos e do medo. Sim, medo, pânico que nos aconteça uma história de amor assim. Comparado com isso, passar o Cabo das Tormentas vinte vezes é uma brincadeira.
Ponham todas as barreiras a Armada vai passar. A vida vai passar. Destruam-na, ela vai voltar.
Se para nós portugueses, Os Lusíadas são a maneira maior de contarmos um tempo de diversas formas, inscrito nos nossos cromossomas, que importância poderão ter para todos aqueles que hoje estão unidos por uma língua, a portuguesa, que, nesse tempo, ganhou mundo e integrou dentro delas todas as culturas e olhares do mundo.
Penso que no mundo de língua portuguesa o Camões e Os Lusíadas são um traço de união, um ponto de encontro, um pouco como se passa entre os portugueses: uma referência comum que nos torna cúmplices. A intensidade dessa cumplicidade varia de comunidade para comunidade, conforme a história da relação de Portugal com cada país e do papel que a língua desempenha na construção da respectiva identidade nacional. Se por exemplo no Brasil, com as feridas da colonização saradas e com cerca de 200 anos de relação autónoma com Portugal, há praticamente uma apropriação do Camões como figura nacional, o mesmo já não se passa com Angola ou Guiné onde ardem ainda as cicatrizes da colonização e onde Os Lusíadas podem ainda correr o risco de ser lidos à letra. Claro que a letra da obra é etnocêntrica, revela uma época e uma visão do mundo e sistema de valores que exclui, apresenta os colonizadores.
Há ainda a ter em conta os diferentes níveis de desenvolvimento. Por exemplo, fiz a gravação integral da obra. No Canto X quis integrar vozes das diferentes comunidades falantes de Português: Goa, Macau, Angola, Guiné….e queria vozes que vivessem no respectivo país. Fiz muitos contactos, tive várias hipóteses, que nunca se concretizaram, por razões várias, mas sobretudo porque não é fácil encontrar em alguns dos países níveis de domínio da língua entre grandes camadas da população capazes de fazer essa gravação. Não estranho que a referência generalizada aos Lusíadas que acontece em Portugal e no Brasil, no estudo da língua, nunca venha a acontecer em Angola ou Moçambique. Cada país terá outras narrativas para se contar.
Será sempre uma obra que iluminará do centro para a periferia. É muito menos o que a prende a um tempo, a uma data, do que aquilo que a projecta para o futuro, para o universal.
Um projecto como este não deveria ser assumido como serviço público e ter apoio transversal a várias áreas da governação?
A governação, o Governo tem legitimidade para determinar o que é serviço público. Não me compete ser juiz em causa própria. O que penso é que há um défice enorme do lugar que o imaterial tem na definição das políticas dos Governos do Mundo. Do papel disso na vida das pessoas, na luta feroz entre os interesses do lucro e da ganância e o do bem estar das pessoas e saúde do mundo, na imposição violenta, através dos media e da educação, desses modelos e dessas narrativas que servem o interesse de meia dúzia. E o Governo português não está inocente nisso. Nem eu estou inocente.
O que é um serviço público na cultura? Existe? Existe sequer cultura? Existe sequer orçamento da cultura?
A cultura não é o qb visível e espectacular desta organização? A governação fomenta a arte e a cultura também como um alfobre onde se se produza a sua própria crítica? Se a cultura e a arte não produz a denúncia da sociedade e do poder e se não é benvinda por isso e paga também para isso, então é só consumo, é só sistema, voracidade, mais do mesmo.
Com este projecto não tenho sequer essa pretensão.
Espanta-me que o poder, a governação, não se aproprie dele toda vaidosa. Estamos mesmo muito mal!