Neste meu primeiro artigo no TORNADO, volto a alguns dos princípios que têm norteado o meu olhar e a minha reflexão sobre o jornalismo.
Há uns anos, sobretudo antes do surgimento da Web 2.0 em 2004 e do desenvolvimento das redes sociais, o jornalista era o principal mediador entre os cidadãos e o “acontecimento”, entendido este como o que rompe a normalidade e se impõe aos nossos olhos e à nossa atenção. O que o jornalista dizia ou escrevia então sobre um acontecimento determinava ou influenciava, em grande parte, o que o público pensava e sobre o que pensava. Juntamente com as organizações que funcionam como fontes, o jornalista possuía um poder e uma autoridade que lhe permitiam decidir quem tinha voz no espaço público e quem era excluído dele.
Hoje o jornalista já não é o principal mediador da informação que chega aos cidadãos, embora continue a deter um papel importante na sociedade, que não desapareceu com as redes sociais e com os desenvolvimentos tecnológicos subsequentes. Hoje qualquer cidadão pode divulgar factos e opiniões, verdadeiros ou inventados, mas o simples facto de os comunicar não transforma esse cidadão num jornalista, ainda que os seus textos e as suas imagens contenham matéria que possa ser considerada “nova”, “actual” e de “interesse público”, isto é, que possa ser chamada “notícia”. O cidadão que escreve nas redes sociais não está vinculado à procura da verdade nem se rege pelas normas que enquadram a profissão de jornalista. O chamado “cidadão-jornalista” não é mais que uma perversão do jornalista profissional.
Ontem como hoje, ser jornalista pressupõe um “contrato” com os cidadãos e com a sociedade, que esperam receber dele informação rigorosa e independente sobre o que acontece no mundo. Em troca da independência a que está obrigado, o jornalista é credor de confiança, credibilidade e autoridade, as quais lhe conferem uma legitimidade e um estatuto que o colocam acima de quaisquer interesses e inclinações, sejam eles de natureza pessoal ou política, respeitem as instituições públicas ou privadas. Mas não basta que um jornalista se declare independente. É preciso que os cidadãos lhe reconheçam essa qualidade.
Ser jornalista é obedecer a um estatuto profissional vertido na lei e a um código deontológico aceite pelos pares, que lhe conferem direitos e deveres.
As redes sociais e a possibilidade de cada cidadão poder comunicar directamente com outros cidadãos sem a intermediação profissional do jornalista tornaram mais ténues as fronteiras do jornalismo e da comunicação, com prejuízo da credibilidade do jornalismo. É por isso que o debate sobre o que é ser jornalista hoje não pode abstrair-se do património histórico adquirido pelo jornalismo:
– em primeiro lugar, a existência de uma mitologia quase indiscutível em torno do que é ser jornalista, derivada do facto de a emergência de uma imprensa livre se encontrar historicamente ligada à construção dos regimes democráticos;
– em segundo lugar, o facto de o jornalismo não caber na definição de profissão organizada. Ao contrário dos médicos ou dos universitários, os jornalistas não são obrigados a possuir um diploma nem devem o seu prestígio social a um curso especial, mas a outros recursos, como a qualidade e o rigor da escrita, a visibilidade social, a proximidade com os detentores do poder, a coragem (caso do repórter de guerra);
– em terceiro lugar, a circunstância de o trabalho jornalístico não poder ser compreendido fora da análise das interacções estabelecidas no seio das redacções ou das relações com as fontes;
– em quarto lugar, os quadros mentais próprios do campo jornalístico engendram comportamentos específicos, tais como definições do que é ou não notícia (os critérios jornalísticos), formas específicas de escrita, utilização de estereótipos e lógicas de afirmação face a meios concorrenciais;
– em quinto lugar, o “saber fazer” do jornalista decorre e constrói-se no seio de constrangimentos próprios de uma estrutura de interdependências com a hierarquia, os colegas, as fontes, que nenhum discurso sobre a liberdade do jornalista é capaz de dissipar;
– em sexto lugar, o peso das estratégias comerciais da empresa, os objectivos que fixa quanto aos seus lucros e ao proveito social do público determinam a importância da informação, que resulta, em grande parte, do que falam outros títulos da concorrência, (a “vigilância cruzada” entre concorrentes produz efeitos perversos, como seja a polarização em torno dos mesmos objectos e das mesmas temáticas, com apagamento de outras questões e pontos de vista);
– em sétimo lugar, a influência dos novos media e dos novos comunicadores e a velocidade da comunicação e da informação. O jornalista não pode já limitar-se às fontes tradicionais e institucionais. As redes sociais, os blogs e toda a panóplia de fontes formais e informais constituem ao mesmo tempo um desafio, um risco e uma forte concorrência.
Como defender o campo jornalístico e preservar a identidade do jornalista? Matéria para outro texto…
Estrela Serrano, Doc.Uni.,Iniv./Media e Jornalismo