Faltam na política portuguesa Ideias claras servidas por palavras simples em vez da habitual retórica enrolada em que as ambiguidades e os ‘soundbites’ servem para ludibriar consensos e facilitar enganos.Mas escasseia também, e muito, o cumprimento da palavra dada e o respeito pelos princípios proclamados.
Dessas carências que alimentam-se o populismo e o reacionarismo larvares.
Quando o meu amigo João Semedo morreu (Julho de 2018) escrevi algures, em jeito de despedida a propósito da sua ultima batalha pela salvação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), «a luta continua e prosseguiremos determinados neste combate». Obriguei-me então a não me calar e por isso não confundo os objectivos necessários com o ‘possibilitismo’ claudicante que, provavelmente com boas intenções, parece estar a emergir entre algumas personalidades.
Estamos nos últimos dias em que, na Assembleia da Republica, se debate o que será o futuro da saúde em Portugal.
Discute-se, ainda, a possibilidade de haver ou não uma nova Lei de Bases da Saúde que inverta o rumo de degradação do SNS resultante da Lei que o PSD/CDS impôs em 1990.
As esquerdas têm a oportunidade de contribuir positivamente para garantir aos cidadãos a liberdade de confiarem numa vida saudável sem a ameaça de serem excluídos desse direito essencial pelo negocismo dos grandes grupos privados do sector.
Pelo que se conhece a possibilidade de as esquerdas corresponderem ao que delas se esperaria foi bloqueada quando o Grupo Parlamentar do PS, num aparente recuo face ao que o próprio Governo tinha antes proposto, se erigiu no irredutível defensor das Parceria Público Privadas (as célebres PPPs) na saúde.
Em nome de uma pretensa sensibilidade para com o sentir de Marcelo Rebelo de Sousa o Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) defende agora, a todo o custo, que a gestão dos serviços públicos da saúde continue a poder ser entregue a grupos privados. Nem os recentes escândalos com as PPPs de Cascais e de Vila Franca de Xira parecem ter facilitado ao Grupo Parlamentar do PS a lucidez suficiente para preservar o entendimento das esquerdas para uma nova Lei de Bases da Saúde.
É neste quadro e neste tempo que importa ser claro. Duas ideias recentemente postas a circular podem servir para facilitar a deriva neoliberal do GP-PS mas não correspondem à verdade nem podem permanecer no diáfano manto da fantasia que as enforma.
A primeira é a de confundir as PPPs com a contratualização de serviços com os privados. Obviamente que ninguém defende o fim do papel do sector privado na saúde e todos os Partidos prevêem que o Estado possa contratualizar serviços com os sectores privado e social. Isso pode ser útil em áreas onde o Estado tem carências e onde o sector privado tem a possibilidade de ser supletivo.
Coisa totalmente diferente é entregar a gestão de estabelecimentos públicos aos grandes grupos privados (parte dos quais estrangeiros). Fazê-lo é não apenas perverter a lógica de funcionamento do serviço público de saúde, conforme os recentes escândalos de Cascais e Vila Franca de Xira tão claramente ilustram, como significa continuar a acarinhar um dos mais escandalosos (nalguns casos a roçar a existência de crimes em investigação) atentados à economia nacional.
Abrir aporta da gestão dos estabelecimentos públicos aos interesses privados é estender a passadeira para a destruição do SNS. É fazer com a saúde dos portugueses, onde os grandes grupos ganharam um poder imenso, aquilo que felizmente (ainda?) é impensável noutros domínios. Não se conhece quem defenda que a gestão das Câmaras possa ser entregue a grupos privados especializados, que a gestão dos Agrupamentos Escolares seja concessionada a grandes colégios ou que as esquadras da PSP passem a ser geridas por empresas de segurança privadas.
A segunda falsa ideia posta a circular nos últimos dias é a de que António Arnaut não seria contra as PPPs. Mentira!
As PPPs não existiam na Lei do SNS de 1979 nem o projecto que Arnaut e Semedo nos legaram lhes abria as portas. Mais António Arnaut sempre foi claro em esconjurar a gestão privada dos estabelecimentos públicos de saúde. Em Abril de 2018 numa mensagem que divulgou escrevia «a grande e principal motivação política desta proposta é fazer regressar o SNS aos seus valores e princípios fundadores e constitucionais, a saber: direito à saúde para todos e assegurado pelo Estado através do Serviço Nacional de Saúde. Um SNS universal, geral e gratuito, de gestão integralmente pública (…)»
De gestão INTEGRALMENTE pública!
Ele, que foi Presidente do Partido Socialista e um referencial ético do Partido, sabia bem do que falava e o que defendia. As PPPs estavam nos antípodas do seu projecto e ele nunca escondeu que não se tratava aqui de um pormenor mas antes de uma questão central.
O GP-PS sabe seguramente bem por que razão está a inviabilizar o entendimento das esquerdas para defender a promiscuidade dos grande grupos privados na gestão do sector público.
António Costa saberá se tal justifica que desonre, com isso, a palavra que deu a António Arnaut na véspera da sua morte de que iria defender o SNS.
Mas a nós que acreditamos na democracia e num futuro mais justo resta-nos a liberdade de dizer com clareza que a posição do GP-PS não é compaginável nem com aquilo que o PS sempre defendeu em matéria de Lei de Bases da Saúde nem com os mais elementares princípios da social democracia e do Estado Social.
Não sei se o BE e o PCP irão ceder à chantagem e à campanha intimidatória que o GP-PS está a desenvolver mas sei, sem margem para dúvida, que ser socialista não é isto.
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