Dizem, e é bem capaz de ser verdade, que o amanhecer brasileiro se esmera quando se aproxima do São Francisco.
Se há algo que este rio possui e transmite é a identidade, essa identidade caipira, de fala mansa e olhar brilhante, num ritual pausado de dádiva sem esperar permuta.
Porém outro dos seus traços marcantes, este extensível à totalidade do território brasileiro, é a desigualdade que faz com que metade da sua riqueza esteja concentrada em apenas 10% da população. Todo o Nordeste observa esta regra sendo-lhe habitual a convivência entre o progresso e a regressividade social ao que não é alheia toda a sua história – a ligação entre o cristianismo e a escravatura de que resultou uma sociedade teoricamente cristã mas de práticas opostas; a combinação entre o liberalismo e a escravidão de onde resultaram liberdades civis para uma escassa minoria, até à aliança entre o desenvolvimento e a desigualdade estrutural que originou uma discrepante concentração de riqueza.
A história do Nordeste e da gente do São Francisco está intimamente ligada à da descoberta e colonização do Brasil, simples de contar nos atropelos aos direitos do homem e da natureza – 1501, dia de São Francisco, Américo Vespúcio ao serviço da coroa portuguesa descobre a foz daquele a que, há milhares de anos vogando entre margens, retirando do seu curso o alimento, a argila para os utensílios, os índios chamavam Opara (Rio-Mar). Obedecendo às ordens reais, os nomes nativos dariam lugar a outros que evocassem a cultura cristã dos colonizadores. Se inicialmente a alteração se limitou ao nome, o tempo e o homem trataram de fazer evoluir a transformação. Em 1549 chega o primeiro governador do Brasil, Tomé de Souza, acompanhado por Francisco Garcia d’Avila, primeiro senhor da Casa da Torre e percursor dos bandeirantes. Nas caravelas, gado. Estavam reunidos os ingredientes principais para o início da lenta devastação – evitando a destruição dos canaviais, o gado era conduzido para o sertão, preferencialmente ao longo do rio. Os animais teriam terra e água para crescer e Portugal iniciaria o processo de colonização. Terras? As dos índios, agora dizimados e foragidos. Em 1600 começaram a chegar os missionários com outras intenções que não as dos lucros económicos, mas as facilidades previstas estiveram longe das encontradas. Se por ordens reais cada donatário deveria conceder uma légua de terra às missões, na colónia longínqua prevalecia a lei do mais forte. Por outro lado, o efeito das missões na preservação das culturas nativas estava em consonância com a época que se vivia.
Os missionários que conseguiram instalar-se tentavam efectivamente defender os indígenas da violência física dos colonos mas faziam-no agregando-os em aldeias tipicamente europeias, tentando alterar as suas crenças, negando-lhes a ancestral memória cultural e civilizacional, descaracterizando-os. Em simultâneo, e na dificuldade de escravizar a população nativa, a rota da escravatura passou a fazer escala no Brasil onde eram deixados alguns dos negros capturados em África.
Em tudo isto o São Francisco tomou parte activa e é mostra viva, ficando assim composta a miscelânea genética vindoura, o retrato do homem do São Francisco dos nossos dias, um misto do sentimento semi-trágico do colono ibérico, da dignidade do índio e da estrutura física do africano numa amálgama condensada de crenças e costumes tão díspares como as culturas que o compõem.
Desde a sua nascente no Miradouro da Canastra, em Minas Gerais, até à foz no pontão do Cabeço, em Alagoas, o “Velho Chico” atravessa cinco estados (Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas). Uma das principais referências hídricas do Brasil, ele tem sido estrada, energia e alimento, além de ponto de confluência cultural.Com o evoluir dos séculos a importância deste rio nunca foi ignorada. Na voz do povo ele foi o “Caminho Geral do Sertão”, o “rio dos currais” que, auxiliados por longos e pesados varejões com pontas de ferro que apoiavam no fundo como forma de impulso, homens atravessavam nas suas balsas transportando gado, carga preciosa à altura Já pelo século XVII, a notícia de ouro por aquelas paragens atraiu exploradores, aventureiros, desempregados. Foram alguns os casos em que o rio foi represado ou desviado artificialmente para outros canais deixando o seu leito a descoberto. Durante a Segunda Guerra Mundial o São Francisco foi uma alternativa segura para evitar os submarinos alemães como, mais tarde, foi caminho para seringueiros recrutados para trabalhar na Amazónia ou para os migrantes em busca de vida melhor em S. Paulo. Era o tempo dos vapores que misturavam na sua carga pessoas, legumes, café, algodão e animais, o tempo em que foi chamado o “rio da unidade nacional”. Para o designar assim hoje, só percorrendo as suas margens.
Onde antes navegavam vapores hoje apenas podem circular balsas, pequenos barcos de transporte entre populações ribeirinhas ou barcaças de pescadores que açoitam o rio na tentativa de espantar para as suas redes o pouco peixe existente. Apesar do rio se mostrar depauperado muitos mantêm-se na lida, conscientes de que os seus poucos estudos não lhes proporcionariam outra renda maior.
A decomposição ecológica levada a cabo pelo homem ameaça ressequir essa corrente ainda valiosa: cerca de 95% dos manguezais e vegetação que outrora ladeava as suas margens foram destruídos para fornecimento da indústria do carvão provocando um assoreamento constante; as barragens vêm retendo as águas, alterando a sua temperatura, os ciclos do rio e da piscicultura; os dejectos químicos dos mega- projectos agrícolas contaminam as águas e aniquilam o peixe na mesmo proporção; fábricas de açúcar drenaram terreno e plantaram cana; as cidades ao longo do seu curso vertem nele as águas residuais. Debate reacendido em cada campanha eleitoral, discute-se a sua transposição que levará água às terras mais áridas do Ceará ao que se opõem os que reclamam pela revitalização do “Velho Chico”.
De tudo vai restando a memória da gente do São Francisco, a fartura que o rio lhes proporcionou. Adaptaram-se e aguardam sem grandes expectativas. Essencialmente pescadores e agricultores, vendem nos mercados o resultado do seu labor na terra ou na água. São também artesãos, seguidores dessa arte que lhes ficou dos seus antepassados índios. Modelam o barro, agora mais para turista comprar do que para seu próprio usufruto. Porque o presente não tem muito para mostrar, moldam as “boiadas” e os “boiadeiros”, imortalizam Lampião, o cangaceiro justo do Nordeste. Por poucos reais, camionetas levam o seu trabalho anónimo para a Bahia, bastião do turismo nordestino.
Nas pequenas comunidades ribeirinhas o quotidiano decorre lento, ainda indiferente no que respeita ao futuro. Miúdos mergulham ou lançam a tarrafa que traz o peixe miúdo para o lanche, lava-se roupa, areiam-se tachos, numa autêntica casa sem tecto nem paredes. Da povoação maior chega a barcaça com aqueles que foram buscar o essencial. Por um real, dois miúdos carregam os sacos e entregam-nos na carroça puxada pelo burro pachorrento. De quando em vez passa o barco com turistas curiosos. Na esplanada do bar observa-se calmamente a passagem do dia ao sabor da cerveja anunciada em cartazes apetecíveis. O ensino e a saúde chegam ali bem mais dificilmente do que a publicidade.
Território não é apenas um mapa como um povo não é um mercado mas uma interacção de gente, cultura, trabalho, memória, política e fé. Torna-se por isso necessário melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) sendo prioritário transformar as comunidades ribeirinhas em guardiãs da sua própria riqueza fomentando a reflorestação das suas margens bem como a vigilância sobre a evolução da piscicultura em conjunto com técnicos, além de alertar todos os que estão ligados ao ensino e possuem meios para despertar a consciência ecológica nos alunos, não apenas nos municípios, banhados pelo São Francisco mas também dos que ladeiam os seus afluentes, bombeadores de água e de vida para o “Velho Chico” envelhecido.