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Domingo, Novembro 3, 2024

Servir uma Cidade: um projecto exemplar de voluntariado

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Serve the City: assim é conhecido este projecto, constituído em associação em Portugal e internacionalmente em ONG. A ideia ganhou forma e substância em 2005, em Bruxelas, com uma semana de iniciativas de serviço à cidade, em que muitas dezenas de voluntários se mobilizaram para o “encontro com pessoas em situações de fragilidade social e de organizações que as acompanham”, explica Alfredo Abreu, Presidente da Direcção da Serve the City Portugal. Depois disso, rapidamente outras cidades se deixaram inspirar, surgindo manifestações análogas em Amesterdão, Dublin e Lisboa (2007), por exemplo. Em muitas cidades de vários continentes existem expressões deste género de serviço. As temáticas e a abordagem podem variar, mas permanece a ideia de “muitas pessoas fazendo pequenos actos de bondade podem fazer uma grande diferença”. E entre estes importa estabelecer “pontes entre pessoas, territórios e instituições”.

O espírito que anima estes voluntários resume-se numa frase: Inspirados por Jesus, abertos a todos”. Serve the City não persegue, todavia, fins religiosos nem está ligada a nenhuma confissão. Jesus, a figura inspiradora, Jesus, o servo por excelência, convida todos a servir e a todos e evoca “valores civilizacionais como o amor, a humildade, a coragem, o respeito, a esperança e a compaixão”

Serve the City não é uma IPSS, mas uma rede de voluntários que trabalha com IPSS, autarquias, escolas e universidades, empresas, associações e comunidades de fé. Prossegue o propósito de promover uma “cidadania activa, próxima e responsável”. E enquanto rede, relaciona-se com outras instituições segundo um princípio de parceria, não para as substituir no que estas já fazem. E são várias e de vária ordem as parcerias estabelecidas, as primeiras das quais com as Aldeias SOS e Casa Sol.

Posteriormente, outras parcerias foram sendo celebradas: com a Comissão Europeia, a Câmara Municipal de Lisboa, a Comunidade Vida e Paz, o Exército de Salvação, a Associação Conversa Amiga, o CASA (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo), Juntas de Freguesia, escolas, associações, empresas. Enfim, um total de mais de 125 entidades.

Em Portugal começou por projectos pontuais de apoio a crianças em situações de vulnerabilidade, com a renovação de instalações de entidades parceiras e com limpeza de tags das paredes de zonas históricas. Até que finalmente em 2011 começaram os Jantares Comunitários, que se tornaram, por assim dizer, a imagem de marca da Serve the City. Por eles passaram milhares de pessoas e dezenas de entidades.

Entretanto, outras iniciativas brotaram: apoio a crianças do 1.º ciclo em risco de abandono escolar e a idosos em isolamento e ateliês comunitários. Para o corrente mês, está planeado o arranque de uma horta comunitária na cidade e, para um futuro não remoto, um projecto mais com idosos e dois outros com crianças. Ao todo, estão mensalmente envolvidos entre 400 e 500 voluntários.

Os Jantares

O voluntariado na Serve começa, pois, com os Jantares. Como, com quem e onde funcionam? Primeiramente, o onde. Actualmente, na cantina do Instituto Superior Técnico, sempre a uma quarta-feira com regularidade quinzenal. Começaram recentemente no Porto, na Faculdade de Direito, mensalmente. E existem planos para um terceiro núcleo, a surgir em Coimbra.

Com quem? Os Jantares são confeccionados e servidos num local não conotado com a pobreza. Isto é, não vão à rua, mas são as pessoas que vêm a um local onde se podem sentar à mesa uns com os outros e com os voluntários. Em cada jantar, entre 200 e 300 refeições são oferecidas e servidas, voluntariamente, por trabalhadores de entidades públicas ou privadas parceiras.

Às mesas sentam-se para comer, espalhados aleatoriamente, pessoas de todo o tipo, proveniência e fortuna, juntamente com voluntários da Serve the City, um, no mínimo, por mesa. A excepção é Agosto, em que é a própria associação quem desempenha os dois papéis, havendo uma equipa que se ocupa de cada um: quem serve e quem se senta à mesa para comer.

Os jantares não visam, sublinha Alfredo Abreu, de atender às necessidades alimentares, mas de “proximidade, dos afectos e do intercâmbio genuíno entre quem apoia e quem é apoiado”, de “proporcionar ao maior número possível de cidadãos oportunidades de encontro e interacção que incentivem e apoiem a mudança”. E reforça: “Procuramos ver e reconhecer a dignidade e valor de cada pessoa: «conhecêmo-los pelas suas necessidades; e se as conhecêssemos pelo seu nome?!» é mais do que uma frase, é um “programa” da nossa rede de voluntariado.”

Para haver mudança é imprescindível desejá-la

Ora, daqui nasce a mudança. E esta não se produz apenas no ajudado. Ao encetar-se uma relação, entram em acção os elementos que são o núcleo de toda ela: afecto, companhia, atenção. Do encontro à mesa nasce a amizade entre pessoas da cidade, que cresce nos reencontros de mais e mais jantares. Desenvolve-se a comunidade mediante o intercâmbio genuíno entre ajudador e ajudado.

Ausente está a transacção entre quem tem e quem não tem — lógica que reafirma a desigualdade da posição na relação, do género “eu tenho, tu não tens; eu dou, tu recebes; eu sou a parte boa, tu és a parte menos boa”. Os participantes, sejam eles quem forem (pessoas necessitadas, desvalidas, carentes e voluntários) sentam-se todos juntos à mesa, cada uma exibindo uma etiqueta autocolante na lapela exibindo o seu nome.

No início perfeitos desconhecidos, uns dos outros somente conhecendo os nomes. Profissão e grau não importa, só os nomes, pessoas, sendo cada uma um universo, logo muitos universos que entram em relação na cidade, que encetam uma conversa à mesa, que pode principiar pelos motivos mais triviais. A promessa de uma amizade.

Nos Jantares, “lado a lado, nos conhecemos pelo nome, cada um dando e recebendo, vão muito para além do acto isolado de entrega de alimento. E isso, cremos, é o início de novas possibilidades.” Deste modo, a mudança ocorre em todos. Alfredo Abreu testemunha de si mesmo. Outrora tinha os meus percursos seguros, previsíveis e distantes das situações com que passei a confrontar-me”. A ser voluntário na Serve, passou a cultivar amizades antes “grandemente improváveis”, a ver a vida por novas perspectivas e desenvolver “a capacidade de empatia e o sentido de justiça”.

E sabe que pode fazer a diferença na vida do outro, tal como os outros puderam começar a fazer diferença na sua. Mais frequente e profundamente se comove com a “beleza e a tragédia humana” e vê existir em si maior desejo de contribuir para uma Cidade “mais humana” e predisposta a uma “cultura de generosidade”, menos auto-centrada e mais virada para o outro.

A Empatia é a chave

Vítor Rafael, voluntário há quatro anos, confirma a “empatia entre todos os intervenientes”. Nos Jantares, muitos expõem “as suas vidas, as suas lutas, frustrações, desilusões”, mas dá-se igualmente “a alegria do encontro, do optimismo, das vitórias alcançadas, do acreditar que ainda é possível no fim do túnel uma luz de esperança.” No princípio, confessa, estava animado de “forte disposição de ajudar muitas dessas vidas fragilizadas”.

O caminho, porém, tornou-se “descendente, de humildade. Estar à mesa com todos esses é estar num lugar de desconstrução, onde deitamos por terra muitos preconceitos e barreiras criados nefastamente ao longo da nossa vida.” Somos feitos “do mesmo barro”, afinal, com as mesmas limitações e os mesmos anseios de felicidade, bem-estar e paz. Cada reencontro com estes amigos acabou por se tornar, para Vítor Rafael, um reencontro consigo mesmo. A troca de abraços e olhares, o ouvir, a “cumplicidade gerada à volta de uma refeição” conduz “mistério profundo” do amor genuíno.

O triunfo do amor entre cidadãos da mesma cidade não se dá, contudo, sem tensões nem fricções. Pessoas há que vivem situações difíceis, em permanente stress, sendo por isso de esperar, assinala Alfredo Abreu, alguma “dureza pontual”. Nada de muito significativo, porém. As escassas dificuldades devem-se “quase exclusivamente a situações de consumos de bebidas ou drogas.”

Todavia, se as pessoas forem tratadas “como pessoas, com toda a dignidade, agem naturalmente com cortesia e respeito. Além disso, um espaço seguro e confortável é desejado e desfrutado profundamente pela maioria dos convidados.” Disto, portanto, advém a diferença. Isso mesmo é sublinhado por Vítor Rafael. Durante os Jantares entre amigos, a cultura do afecto e o respeito mútuo que os impregna têm bastado para resolver os problemas.

Todos podem ser voluntários, todos se podem candidatar. Mas tornar-se voluntário com a Serve the City passa por um processo de recrutamento, feito mediante um questionário destinado a aferir das motivações do candidato a voluntário. Começa-se por enviar uma mensagem, através do formulário de contacto no portal da associação.

Após esse primeiro contacto, os interessados são convidados a uma primeira experiência numa das iniciativas a Serve the City, por exemplo num Jantar Comunitário. Depois disso, se tiverem esse desejo, os candidatos poderão formalizar uma candidatura de voluntariado.  Há aqueles que vão experimentar, convidados por amigos que já o são, que gostam e acabam por formalizar a candidatura.

Ainda que a inspiração seja Jesus e a matriz seja cristã, são claras as palavras do presidente: não é uma organização religiosa. Está por isso totalmente desprovida de espírito de proselitismo. Os voluntários não procuram, por isso, “converter” ninguém à fé cristã, seja ela na variante católica, protestante ou evangélica. Estar juntos, fazer pontes, desenvolver as tais amizades “improváveis” com o outro, que é um concidadão, transformar a vida na cidade de uma prodigalidade de exclusões à inclusão  — eis o propósito.


Há algum tempo que desejava fazer voluntariado. Sair da casca, da zona pessoal “de conforto” ou desconforto. Sair de mim próprio e da minha vidinha, com tudo o que ela tinha e tem de previsível, rotina, preocupações familiares até ao âmago do muito pessoal, para perceber que há outras pessoas, outros mundos com outros problemas, dores, conflitos e enredos.

Que os meus próprios problemas e as minhas próprias idiossincrasias não são exclusivos. Conhecer-me a mim mesmo, para honrar em sentido mais completo e profundo o conselho inscrito no oráculo de Delfos e tomado como lema por Sócrates, implica sair de si mesmo, perceber que cada um de nós não é uma ilha, mas uma península, que uma mudança de perspectiva é necessária.

Ou, como disse Jesus, “dá e ser-te-á dado”. Entendia que precisava dessa mudança, que não somente poderia dar de mim mesmo, mas receber. E a maior coisa que precisava de receber era, sentia-o, mudança de mentalidade na minha visão do outro e, por extensão, de mim mesmo. E como conhecia pessoas, amigos, que serviam na Serve the City, o passo foi dado, primeiramente com a participação numa apresentação num hotel de Lisboa.

No princípio, era o desejo de voluntariado pessoal. Paralelamente, impunha-se o desejo de o fazer enquanto empresário. Eu e a Cristina, minha esposa, temos uma pequena lavandaria. Propus à direcção da Serve servir lavando as toalhas dos Jantares, voluntariamente. E assim temos feito.

Depois, fui ao primeiro Jantar, numa quarta-feira de Junho. Desafiei a minha filha Caroline, de 9 anos, em quem reconheço qualidades de amor ao outro, simpatia, gosto em ajudar, a ir. Quis que fosse uma lição de pedagogia para a minha filha, quis lançar nela a semente do serviço. A Serve permite e defende voluntariado em família, que famílias possam estar juntas e juntas com outras famílias e amigos.

É uma dimensão superior de voluntariado, a meu ver, pois promove o alvo de todo o voluntariado: fazer pontes com os outros, construir cidadãos que trabalhem juntos, riam juntos, sofram juntos, vivam juntos na mesma cidade. Todos os Jantares são precedidos de um briefing dirigido por um coordenador de cada equipa ao serviço no Jantar, em que se dão as boas-vindas, os novos voluntários se apresentam e se expõe brevemente a história e a visão da Serve e o modus operandi dos Jantares.

Uns 15 m dolorosos, na cave da cantina do Técnico, com o calor a fustigar. Expus as minhas motivações e a Caroline as dela: ajudar os pobres. E lá vamos sentar-nos à mesa, cada um com uma etiqueta com o seu nome na lapela. Timidez, a reserva inicial de estar sentado à mesma mesa com perfeitos desconhecidos, pessoas muito diferentes, de vários estratos sociais e temperamentos.

Fui a quatro Jantares, em três dos quais com a companhia da minha filha. Gostou. Quando podia e puxavam por ela, quando ganhava confiança, conversava, brincava. No último, em Agosto, a equipa que servia às mesas era composta de voluntários da Serve the City. É o mês especial em que os parceiros estão de férias e a associação tem de se socorrer dos da casa.

Por escolha nossa, fomos para essa equipa. Ficámos juntos. E com que orgulho testemunho a alegria, a desenvoltura e a dedicação da Caroline a servir! Já dizia que na próxima queria ficar ao balcão a servir os pratos, onde uma menina da mesma idade servia ao lado da mãe.

As exigências profissionais da lavandaria, que incluem entregas ao domicílio depois da 19h, deixaram de me permitir ir aos Jantares. Pude provar um pouco do que desejava. E ver o sentido de pertença, de pessoas muito diferentes que se reencontram, se abraçam, se beijam, conversam, contam novidades, cantam os parabéns umas às outras quando há aniversários.

Rever pessoas conhecidas no meu primeiro Jantar e de as cumprimentar. Ouvir dizer a uma senhora, feliz: “Isto é uma família.” Mas continuamos a ser voluntários empresarialmente, cuidando com zelo das toalhas. Espero um dia voltar a esta parte essencial da vida, num Jantar ou em outra actividade, que é servir. Como Jesus disse e fez: “Vim para servir, não para ser servido.”

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