A proposta de Lei está na vanguarda da regulamentação da eutanásia na União Europeia, a par de países como a Holanda e a Bélgica, que a adotaram há quase vinte anos, estabelecendo um modelo de respeito pela liberdade de decisão da pessoa sobre a sua própria morte e também de submeter a legislação civil a critérios puramente civis.
por Nicolas Garcia Rivas, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier
Para entender o significado da proposta de Lei para a regulamentação da eutanásia que foi aprovada pelo Congresso dos Deputados da Espanha, é conveniente começar por observar que o Código Penal atualmente pune aqueles que “causam ou cooperam ativamente com atos necessários e diretos à morte de outrem, a pedido expresso, grave e inequívoco deste último, caso a vítima sofra doença grave que obrigue necessariamente à sua morte, ou que produza sofrimento grave permanente e difícil de suportar, será punido com a pena” de 1 a 6 anos de prisão.
É uma pena atenuada em relação à de homicídio, mas quem hoje pratica a eutanásia não está isento do cumprimento da pena.
Analisar o significado e o alcance da eutanásia que é regulamentado na Lei proposta requer a combinação de uma série de variáveis:
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Qual situação de saúde precária é considerada no que se denomina “contexto eutanásia”
A definição da situação vital que legalmente justifica a eutanásia distingue claramente a eutanásia do suicídio assistido. Essa ajuda pode ser dada a alguém que está em perfeita saúde. Essa não é uma situação de eutanásia. Para que isso ocorra, o sujeito deve estar em situação vital precária que a Proposta de Lei define de forma bastante ampla em seu artigo 3º, que inclui não só as situações de sofrimento físico, mas também aquelas que envolvem sofrimento psíquico grave:
«Condição grave, crónica e incapacitante»: situação que se refere a uma pessoa afectada por limitações que afetam diretamente a sua autonomia física e as atividades da vida cotidiana, de modo que não se podem defender sozinhas, bem como a sua capacidade de expressão e relacionamento, e que estão associados a sofrimento físico ou mental constante e intolerável, com segurança ou grande probabilidade de que tais limitações persistam no tempo sem possibilidade de cura ou melhora apreciável. Às vezes, pode significar dependência absoluta de suporte tecnológico.
“Doença grave e incurável”: aquela que por sua natureza causa sofrimento físico ou psíquico constante e insuportável, sem possibilidade de alívio que a pessoa considere tolerável, com prognóstico de vida limitado, em contexto de fragilidade progressiva.
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Quem certifica a concordância desse “contexto”
A certificação da presença do “contexto eutanásico” é da responsabilidade das Comissões Regionais de Garantia e Avaliação, compostas por 7 membros, entre médicos e advogados. Essas Comissões Regionais também são reconhecidas na legislação belga e holandesa.
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Se a concordância da vontade da pessoa é imprescindível ou pode ser substituída ou presumida
Quanto à expressão da vontade de morrer, existem 3 alternativas:
Se a pessoa está consciente no momento em que se encontra em “contexto eutanásia” – (Caso Ramón Sampedro): Ter feito dois pedidos voluntariamente e por escrito, ou por outro meio que permita o registro, e outro que não o resultado de nenhuma pressão externa, deixando uma separação de pelo menos quinze dias corridos entre os dois.
Se a pessoa assinou uma Diretriz Antecipada (“Testamento em Vida”), ela é considerada uma Diretriz em vigor. Se um representante for nomeado nesse documento, ele ou ela fará a declaração de vontade nesse momento.
Se a pessoa não estiver em condições de expressar sua vontade por qualquer motivo, o art. 5.1 d) estabelece que se um médico “responsável” atestar que o paciente “sofre de doença grave e incurável ou de quadro grave, crônico e incapacitante nos termos desta Lei”, poderá ser realizada a eutanásia, desde que aprovada pela Comissão de Garantia e Avaliação.
Este é o caso mais polêmico, pois não há manifestação da vontade do afetado, mas é uma decisão corajosa da Lei, pois permite regularizar situações que ocorrem todos os dias nos hospitais de nosso país, as quais são resolvidas “por margem da lei ”, expressão que utilizo de forma deliberadamente ambígua porque significa ao mesmo tempo que as decisões são tomadas sem estarem sujeitas a qualquer responsabilidade e que são tomadas com base nas convicções do pessoal de saúde, com base no que significa a “morte digna”.
Transferir tal decisão pessoal para um terceiro é inadmissível do ponto de vista constitucional se não houver controle. Com a nova Lei, essas situações estarão sujeitas ao controle legal.
Entre eles estão os recém-nascidos com malformações graves que não foram detectadas durante a gravidez, por acaso ou negligência médica, o que leva os pais e o próprio recém-nascido a uma vida cheia de calamidades. Do ponto de vista constitucional, os pais não têm o direito de decidir sobre a vida do recém-nascido, embora possam ser consultados. Caberá à Comissão que avalia a situação e decide.
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Se apenas procedimentos “ativos” ou de “omissão” forem incluídos
O que sempre foi chamado de “eutanásia passiva” (abandono do tratamento do paciente quando fútil) está fora da consideração de “eutanásia”, conforme a Declaração de Motivos da Proposta de Lei:
“Em nossas doutrinas bioéticas e criminais existe hoje um amplo consenso para limitar o uso do termo« eutanásia » ao que ocorre de forma ativa e direta, para que as ações por omissão que foram designadas como eutanásia passiva (não adoção de tratamentos tendendo a prolongar a vida e interrupção dos já instituídos de acordo com a lex artis), ou que possam ser considerados como eutanásia indireta ativa (uso de medicamentos ou meios terapêuticos que aliviem o sofrimento físico ou mental mesmo que acelerem a morte do paciente – cuidado paliativo–) foram excluídos do conceito bioético e jurídico-penal da eutanásia ”.
Consequentemente, entende-se que este tipo de ação nem mesmo requer a intervenção da Comissão de Garantia e Avaliação.
A “eutanásia ativa” inclui tanto as ações médicas que causam diretamente a morte do paciente (indicadas nos casos de falta de capacidade física do paciente para realizar a ação por si mesmo) quanto aquelas em que o médico se limita a prescrever o coquetel lítico ou qualquer substância que seja e o próprio paciente realiza a ação que causa sua morte.
Do ponto de vista jurídico-criminal, a distinção entre uma modalidade e outra é importante, pois o suicídio não é penalizado, logicamente, mas a cooperação com o suicídio de outrem sim. Na proposta de Lei, a penalidade para essas atividades é mantida desde que não cumpram o que nela prescreve.
Um feedback positivo
A avaliação que se pode fazer a esta proposição de Direito é eminentemente positiva, pois abrange praticamente todas as situações possíveis, inclusive as mais difíceis de regular, que são aquelas em que o sujeito não tem e não pode expressar sua vontade. A situação descrita como “contexto eutanásico” também pode ser classificada como ampla, sobretudo porque não se limita a reconhecer como tal a doença física incapacitante grave, mas também a doença mental, tão grave quanto a primeira, embora não se manifeste da mesma forma.
Por todas estas razões, a proposta de Lei está na vanguarda da regulamentação da eutanásia na União Europeia, a par de países como a Holanda e a Bélgica, que a adotaram há quase vinte anos, estabelecendo um modelo de respeito pela liberdade de decisão da pessoa sobre a sua própria morte e também de submeter a legislação civil a critérios puramente civis, longe das prescrições ditadas pelas confissões religiosas que conferem à vida um carácter de “santidade” que é antes um eufemismo que serve para expropriar o cidadão de seu direito de decidir sobre sua própria morte.
por Nicolas Garcia Rivas, Professor de Direito Penal, Universidade de Castilla-La Mancha | Texto original em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier
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