“Dói-me o universo porque a cabeça me dói”
Bernardo Soares
Grande é a dor dos expatriados ou estrangeiros, ao entrarem na cabeça da sua pátria. E o convívio com outros co-expatriados, que a fortuna quis tivessem nascido no mesmo rectângulo português ou que, tendo nascido nessas outras terras, pertencem à comunidade pátria dos Portugueses, faz desencadear e agravar por vezes essa dor de cabeça interna, do mesmo interno dos neurónios dentro do crânio. Mas não é que ser expatriado português seja condição para que doa a pátria como a cabeça e o coração, o material e o espiritual. Essas outras pátrias também doem, também têm neurónios dolorosos, moribundos, semi-mortos e totalmente mortos. Também batem mal da cabeça.
Mas, como Português, doer-me a cabeça é doer-me a pátria. Este é o meu universo. Ora, o exercício de doer a pátria é, para um expatriado português, assaz comum. “Este país” — sói dizer-se, assim se dissociando o sujeito da enunciação do referente do enunciado. Fazendo-o, acaba porém por se implicar ainda nesse referente, pela dor de cabeça. Critica-se tanto quanto mais parte desse país se é.
Ao cabo de dez anos de vida em França e Luxemburgo, de visitas e revisitas a Portugal e em processo de regresso definitivo, sobrevêm as estranhezas que me fazem sentir francês no meu país, português no outro.
Há coisas em que a pátria me dói. Uma delas é a incivilidade portuguesa. Dói ver a forma como se conduz, o excesso de velocidade, as manobras manhosas, as acelerações à aproximação das passadeiras, a intolerância e a passagem forçada com apitadelas irritadas quando se está a sair em marcha à ré de um estacionamento, o atravessar-se de repente alguém de uma rua à direita com um STOP, a ponto de por pouco escapar de lhe bater. Nem os peões, ao meterem inopinadamente o pé no alcatrão numa passadeira, escapam.
Dessa doença sofrem tanto eles quanto (é a verdade) elas. Às vezes algum ou alguma automobilista levanta a mão, como a pedir desculpa, não sei, ou a assinalar a manobra, como se a mão tivesse substituído o pisca.
Dói-me a pátria que, certa noite em que fui levar o lixo à rua, atravessando-a no regresso a casa, passa por mim um carro do qual um voz máscula vocifera, sem se deter: “Filho da p…, sai da estrada!” Com machos destes, está a pátria bem servida e é com machos destes que ela mudará, os governantes pàf ou geringonços serão postos nos eixos, e Schäuble, Moscovici e Bruxelas tremerão.
De machos destes e do marido da ex-Ministra Maria Luís Albuquerque, que tenho de me abster de criticar aqui e de a apodar pelo nome que merece (mercenária e promíscua na ética política, para não dizer mais), não vá tê-lo um destes dias a fazer-me uma espera à porta de casa para me partir os cornos.
Dói-me que ao seu chefe, Passos Coelho, nada tenha percebido de nada com o que os erros seus, má fortuna e os seus ódios ardentes lhe fizeram. Estou certo que emigrar, expatriar-se, haveria de lhe dar a lição de que carece.
Dói-me a pátria e a cabeça que deseja e acha que se pode reverter leis, decretos e opções ideológicas do Governo anterior, mas considera em relação ao chamado “acordo ortográfico”, TINA.
Doem-me a pátria e a cabeça. Ao longo dos séculos, assim foi com os expatriados portugueses. Quantos se não lembram das figuras dos “estrangeirados” do século XVIII? E do retrato do Cavaleiro de Oliveira em O Judeu de Bernardo Santareno? — e não quero que passe de doer.
As minhas experiência de dor de cabeça e de pátria e de universo, fora e dentro dela, com os meus compatriotas, levaram-me a definir mentalmente dois paradigmas de filhos da nação portuguesa. Sim, estes dividem-se em dois grupos: os Portugueses e os Tugas. Quero querer que haja mais, entre os leitores, mais expatriados e Portugueses como eu.
Que se não conformem ao Tuguismo e aspirem ao Portuguesismo (como outros, tais como Agostinho da Silva, D. Nuno Álvares Pereira, D. João II, Marquês de Pombal, Sophia de Mello Breyner Andresen, Sá Carneiro, Aristides de Sousa Mendes, Rui Nabeiro), como eu não me conformo. E que lhes doa, como me dói a mim, por tudo e mais ainda por isto: pela ténue suspeita que haja em mim, e neles, ainda algum resto da dor do Tuguismo.
As dores de ficar na mesma ou as de mudar — quais preferimos?
Rui Miguel Duarte, em Herserange