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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A Síria e o niilismo ocidental

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

No ano em que se assinala um século sobre o final de uma das maiores matanças da história da humanidade, acabo de ler Scott Anderson (2014) “Lawrence in Arabia: War, Deceit, Imperial Folly and the Making of the Modern Middle East” que faz um retrato histórico de um dos mais importantes teatros dessa guerra; o da Síria, servindo-se para isso da biografia do famoso Lawrence, bem como de outros actores americanos, alemães árabes, turcos e proto-israelitas.

  1. Sykes-Picot

No ano em que se assinala um século sobre o final de uma das maiores matanças da história da humanidade, acabo de ler Scott Anderson (2014) “Lawrence in Arabia: War, Deceit, Imperial Folly and the Making of the Modern Middle East” que faz um retrato histórico de um dos mais importantes teatros dessa guerra; o da Síria, servindo-se para isso da biografia do famoso Lawrence, bem como de outros actores americanos, alemães árabes, turcos e proto-israelitas.

Livro empolgante e instrutivo, a obra do autor americano não escapa ao ‘ocidental-centrismo’ dominante que, tendo-se habituado a ver as maravilhas do mundo como exclusivo produto ocidental, não resiste hoje a considerar todas as suas desgraças como igualmente seu resultado exclusivo.

O problema do Médio Oriente resume-se assim ao acordo “Sykes-Picot”, como o de África foi apenas o seu retalhar pela conferência de Berlim e o do Mundo, está no Tratado de Tordesilhas, inspirado no “espírito das cruzadas”. O pecado original do Ocidente é portanto o de retalhar o mundo de acordo com puras lógicas do poder, como se porventura, toda a história da humanidade (ocidental, chinesa, maia, africana, etc.) fosse outra e como se porventura a Jihad de Khamenei ou o imperialismo de Putin, não fossem, nos dias de hoje, a recriação do que de pior a humanidade fez no passado, apenas com tecnologias incomensuravelmente mais mortais.

O “ocidental centrismo” dos tempos gloriosos, o que propagava a fé e o império, que a minha geração conheceu ainda na escola do tempo do Doutor Salazar, deu assim lugar ao seu contrário, o niilismo que a intelectualidade portuguesa bebe do New York Times, do Economist ou do Libération, e para o qual todos os problemas são por definição de origem ocidental, e portanto se resolvem com a eliminação de tudo o que possa ser identificado como ocidental.

As mulheres iranianas querem a liberdade e ousam retirar os véus em público? Os israelitas têm um sistema democrático? Os curdos ousam sugerir que há outros colonialismo que não o ocidental? Todos agentes da CIA, herdeiros das cruzadas ou protagonistas de uma civilização decadente! ‘Off with their head’ parafraseando Shakespeare!

Scott Anderson critica acerbamente a divisão imperial franco-britânica do Médio Oriente, mas paradoxalmente admite que a autodeterminação promovida pelo presidente norte-americano Wilson era irrealista e refere como cenários alternativos as conspirações menos bem-sucedidas – e certamente não mais auspiciosas – dos outros actores no terreno. Curiosamente, a Jihad desenvolvida pelos Sahud, que viria a provocar a queda do centenário xerifado de Meca em 1924, é referida apenas de passagem e sem uma análise séria à falta de visão ocidental que permitiu esse dramático desenvolvimento.

  1. A indiferença pelo massacre sírio

Um século depois dos terríveis massacres das populações arménias, da mortandade generalizada pela fome, doença e repressão nas populações de várias etnias dessa histórica Síria, estamos a entrar no sétimo ano do que é para já a maior carnificina do século XXI e que se arrisca a marcar o início de um novo conflito mundial.

Mesmo progressos humanitários do século que passou – como a proibição da utilização de armas químicas – caíram estridentemente com o repetido bombardeamento químico das populações civis pelo déspota local apoiado pelo eixo irano-russo. Alguns refugiados sírios aqui em Bruxelas lançaram o “Centro de Documentação das violações por armamento químico na Síria” cujo trabalho acompanhei nos últimos anos e que obrigou as instituições internacionais, a começar pelas Nações Unidas, a reconhecer o óbvio: armas químicas têm sido repetidamente utilizadas pelas forças do regime contra a população civil.

Campo de refugiados em Damasco – UNRWA-AP

A máquina de desinformação irano-russa, como é natural, tenta negar a evidência. A seu crédito, argumenta com a presente dominação da oposição armada síria pelo jihadismo e escamoteia o facto de o mesmo se passar do seu lado. A aliança irano-russa assenta em brigadas internacionais unidas pela doutrina iraniana da Jihad e suplementadas pela Jihad do Emirato Checheno.

O Ocidente tem larguíssimas responsabilidades neste estado de coisas a começar pelo oportunismo com que lidou com o jihadismo e a continuar pelas desastradas intervenções no Iraque, mas resumir tudo às culpas ocidentais é um erro grosseiro.

Estou em crer que mais que as máquinas de desinformação dos adversários, mais do que a completa abertura ocidental à corrupção das suas elites por qualquer Estado não democrático (seja a China, a Rússia ou o Irão), o problema fundamental é o da expansão ilimitada do niilismo ocidental contemporâneo.

E esse niilismo, quando chega a Portugal, é mais radical que o original. A 16 de Fevereiro vi no “Público” um retrato “geopolítico” da Síria onde os sunitas são considerados um actor geopolítico, como se porventura o sunismo fosse um actor geopolítico, e como se não fossem absolutamente evidentes as dissonâncias entre a Turquia e Qatar, a Arábia Saudita e o Egipto, para não falar das forças curdas, maioritariamente sunitas, mas que são normalmente excomungadas (apóstatas, segundo os jihadistas) pelo niilismo ocidental.

No dia anterior, no mesmo jornal, vejo um raríssimo gesto europeu protagonizado pelo Presidente Macron (ameaçando retaliações caso Assad persista em utilizar armas químicas contra os cidadãos do seu país) ser escarnecido como sendo ‘napoleónico’! Repare-se, vem num artigo de opinião de uma conceituada jurista com vasto currículo humanitário e de uma das mais conceituadas famílias da política portuguesa.

Se no pantanal europeu, ao fim de sete anos de massacre, alguém invoca um princípio fundamental humanitário do direito internacional – a proibição de utilização das armas químicas – é porque esta “vil Europa” tenta redimir o seu “infame imperialismo” travestindo-o de humanitarismo, mas humanidade, como todos sabemos, é coisa que só existe para disfarçar as suas “pérfidas ambições”. E o gravoso silêncio ou aquiescência da opinião pública portuguesa apenas faz com que o disparate ecoe como se fosse sapiência.

  1. O trigo e o joio

A história tem sido quase sempre utilizada como mero instrumento de hagiografias, epopeias épicas ou do seu contrário, mas raramente de instrumento de análise da nossa realidade humana.

Raramente a realidade histórica pode ser apreendida de forma linear, e o mesmo é verdade da história da expansão europeia ou ainda do século americano, que começou com o final da primeira guerra mundial e foi simbolizado por actos como o da declaração do Presidente Wilson a que fizemos referência.

A ideia de que as relações internacionais podem ser resumidas a uma luta pelos interesses de cada um dos protagonistas presentes e que todo o dispositivo da “sociedade das nações” se limita a ser uma mera cortina de fumo para eles é uma ideia profundamente errada que destrói completamente toda e qualquer ordem internacional.

É naturalmente necessário não se ser ingénuo, mas é igualmente necessário entender-se que a redução de todo e qualquer gesto a demoníacas conspirações é igualmente destrutivo de qualquer possibilidade de melhorar as relações humanas.

O Ocidente tem de saber virar a página, ter sentido autocrítico sem dúvida, mas ter também a capacidade de preservar valores e ter a noção da contribuição que trouxe a esses valores.

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