“De recuo em recuo, a filosofia social que presidiu ao desenho constitucional do SNS, vem sendo progressivamente neoliberalizada… não tarda e, quando dermos por isso, do originário SNS, só restará a tabuleta”
(António Almeida Santos, 2003)[1]
Diz-nos a sabedoria popular que “enquanto a vara vai-e-vem, folgam as costas”. Aproximadamente 30 anos depois da primeira vergastada (a Lei de Bases de 1990), a vara ameaça novamente o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Desde a criação do SNS, em 1979, que se confrontam dois modelos distintos sobre a organização da saúde em Portugal. O primeiro modelo defende a estruturação de um serviço prestado pelo Estado, que garanta um acesso universal, que contenha todas as valências de saúde (geral) e que seja gratuito. Por outro lado, o segundo modelo caracteriza-se pela defesa da “medicina convencionada” (recurso a prestadores privados), através da consagração de um sistema de saúde, alicerçado num putativo “seguro nacional de saúde” a ser pago conforme os rendimentos de cada um (Gentil Martins, 2015)[2]. Ambas as propostas são claras e distintas.
A população, os profissionais de saúde, o PS e os partidos à sua esquerda, optaram pelo primeiro modelo: o SNS. Este modelo garantiu a melhoria significativa da saúde em Portugal, colocando o país no topo de um conjunto importante de indicadores internacionais em saúde. Foi através da criação de estruturas públicas de prestação de serviços, com um corpo de profissionais de saúde vinculados ao Estado, que se tornou possível concretizar o direito à saúde. Ainda hoje o SNS representa a responsabilidade de todos para com todos, não permitindo que as pessoas e as comunidades sejam abandonadas à sua sorte económica ou geográfica. É por tudo isto que o SNS é (ainda) um pilar da democracia, um garante da coesão social e um motor do desenvolvimento nacional.
Em 1979 postulava-se que “enquanto não possível garantir a totalidade das prestações , o acesso assegurado por entidades não integradas no SNS (Lei 56/79). À época, orientava-se para a progressiva expansão do SNS e distinguia-se inequivocamente a esfera pública da privada. Porém, a Lei de Bases de 1990, com os votos do PSD e do CDS, abriu caminho para o desinvestimento nos serviços públicos ao possibilitar: “apoiar o desenvolvimento do sector privado da saúde (…) em concorrência com o sector público” e “(…) facilitar a mobilidade entre o sector público e o sector privado (…)”.
A implementação desta visão de “complementaridade” público-privada promoveu o desenvolvimento dos grupos económicos da saúde e fomentou os “franchisings” de serviços onde o Estado era deficitário. Embora a necessidade de proporcionar umas poucas valências específicas fora da esfera pública pudesse justificar a contratação, supletiva, de alguns serviços ao sector privado, o modelo foi generalizado para muitas mais áreas.
O resultado das políticas públicas de “empurrar com a barriga” foi o não desenvolvimento de estruturas e de quadros profissionais que acautelassem os serviços públicos necessários. O Estado tornou-se, a si próprio, refém da (in)capacidade instalada. As sucessivas políticas de saúde baseadas na sub-orçamentação do sector; na “facilidade” do recurso ao outsourcing e na drenagem de profissionais qualificados fez com que o sector público, além de não “concorrer”, ainda fornecesse ao setor mercantilizado mão-de-obra e volume de negócio. Objetivamente o Estado permitiu-se a apoiar o desenvolvimento da iniciativa privada de três formas: (i) por restrição da sua própria iniciativa; (ii) por financiamento via referenciação de doentes e (iii) por “oferta” de profissionais muito especializados.
O entendimento sobre as consequências da dita “complementaridade” público-privada foi compreendida logo em 1991: “muito pouco vai restar do Serviço Nacional de Saúde (…) a iniciativa privada avançará de raíz para a construção de unidades hospitalares, de unidades de saúde e de outras unidades (…). A privada tem agora campo livre para poder vir a actuar, o que não acontecia antes” (Arlindo de Carvalho, Público, 6/04/91).
Tal tem vindo a acontecer….
A produção legislativa até aos dias de hoje não foi capaz de dar um novo fôlego ao SNS. Pelo contrário. A apelatividade do negócio da saúde tornou-se tão intensa que as multinacionais dos cuidados de saúde compraram hospitais e seguradoras, enquanto as administrações dos hospitais públicos se tornaram cada vez menos democráticas e mais “privatísticas”. Nos cuidados de saúde primários adiou-se o seu melhoramento com a alegação de falta de meios.
No sentido de justificar, política e mediaticamente, a descaracterização do SNS, foi fomentado o discurso de que os profissionais do sector público eram “ociosos”, que não tinham capacidades de administração e que a sua opinião “de terreno” apenas visava defender interesses corporativos. Em simultâneo, os sindicatos foram considerados como principais inimigos e o exercício do direito constitucional à greve foi repetidamente acusado de ser uma tática de “lesa pátria” fomentadora da destruição do sector.
Do ponto de vista técnico instalou-se a armadilha ideológica da necessidade imperativa de separação entre financiador e prestador, dependente de um regulador “forte”.
Foi através desta construção ideológica e legislativa que chegámos ao ponto em que o sector privado sorve 40% das verbas públicas destinadas ao SNS. Ainda assim, a “finança privada da saúde”, sempre insatisfeita, lamenta-se que vai: avançando no mercado de acordo com o que serem oportunidades de negócio, mas sem qualquer garantia de volumes de produção ou de rentabilidade dos (…) investimentos”.
Consequentemente, pela mão de Salvador de Mello, os grandes interesses financeiros expressaram a sua orientação quanto ao que deveria vir a ser a política de saúde: o abandono do SNS enquanto primado dos serviços públicos de saúde, assumindo que a responsabilidade do Estado deveria ser o financiamento do “sistema de saúde” e não somente do Serviço Nacional de Saúde: ao Estado compete (…) assegurar o financiamento do sistema de saúde (captação de recursos)…”.
Hoje, quando se analisa a pré-proposta de Lei de Bases da Saúde elaborada pela “Comissão Belém Roseira” não se pode fingir que o âmago da questão é outro que não o financiamento público ao sector privado (Base XX: definição de prestações públicas de saúde, conjugada com a Base XXIV sobre financiamento).
É grave pretender omitir que se perspetiva uma mudança do modelo de proteção social da saúde, iludindo-se o debate com pseudo-tecnicidades assentes numa pressuposta “inevitável” necessidade de separação entre financiador, prestador e regulador. Curiosamente este dogma ideológico apenas é aplicado quando em referência ao sector público uma vez que os “grandes privados” já poderão ser simultaneamente financiadores e prestadores como se constata, por exemplo, no grupo FOSUN.
Sintomaticamente os defensores desta visão “ampla e não restrita” do “sistema” omitem que o financiamento do SNS se alicerça no princípio de justiça redistributiva que norteia o Estado Social Português. Os nossos impostos, através do Orçamento Geral de Estado, destinam-se à proteção coletiva da saúde e não para um “seguro nacional de saúde” (que conduziria a serviços públicos mínimos e desigualdades de acesso conforme o plafond contributivo individual) como proposto por Gentil Martins.
Infelizmente, em vez de se fazer um debate franco e leal como os Portugueses (e também o Prof Gentil Martins) mereceriam, parece haver quem prefira “soprar recados” sobre a necessidade de uma revisão constitucional, supostamente sustentada por um “pacto de regime para a saúde”.
Neste momento histórico em que se pretende refazer a Lei de Bases da Saúde importa: (i) clarificar a separação entre sector público e privado; (ii) debater o financiamento do SNS não o escondendo sob as vestes genéricas de “financiamento da saúde” e, sobretudo, (iii) criar condições para que os portugueses não necessitem de se onerar com a contratação de seguros comerciais de saúde.
Não o fazer é prosseguir pela via da contínua “degradação e degenerescência” do SNS, como alertava António Arnaut.
Urge assumir o desenvolvimento do SNS enquanto forma pública de prestação de serviços de saúde, sem hesitações ou preconceitos ideológicos. É necessário acabar com a voragem.
As hesitações, as transigências benevolentes, os compromissos tão do nosso feitio, irão corromper todas as iniciativas. Uma experiência falhada num ponto essencial, prejudica irremediavelmente o conjunto e o fim que se procura chegar”.
Um agradecimento ao Dr. Mário Jorge Neves, autor do livro “A Saúde, As Políticas e o Neoliberalismo”, 2005. Por opção da autora, este artigo respeita o AO90
[1] Acção Socialista de 17 de Dezembro de 2003 (disponível na internet)
[2] Lição proferida na Reunião da Primavera, 30 de Maio, 2015 (disponível na internet).
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