Nos últimos dias sucederam-se um conjunto de situações em torno das urgências, particularmente da obstetrícia, que encheram as notícias da generalidade dos órgãos de comunicação social. Tratando-se de uma situação gravíssima, importa contextualizar a sua eclosão e apontar diversos aspectos que para ela têm contribuído ao longo dos anos.
Naturalmente que uma situação com esta dimensão não surge de geração espontânea e é sempre o resultado da acumulação e agudização de fatores que não foram objeto da adequada abordagem e solução em devido tempo.
Para quem acompanha regularmente as questões da saúde, isto não constitui, infelizmente, uma surpresa.
Sem SNS não há carreira médica e sem carreira médica não há SNS
Era tudo uma questão de tempo, como estamos a verificar agora.
O SNS sempre foi, para alguns sectores políticos e económicos, um entrave para a transformação da saúde num qualquer bem de consumo sujeito à lei da oferta e da procura.
Ao longo dos anos, têm proliferado as tentativas para se estrangular este direito constitucional.
A enumeração desses exemplos seria demorada e importa colocar com objetividade os seguintes aspetos fundamentais:
1 – Em 1988, um governo presidido por Cavaco Silva publicou o Decreto – Lei nº 19/88 que aprovou a Lei de Gestão Hospitalar.
Este decreto-lei revogou o Decreto Regulamentar nº 30/77 que tinha aprovado o “regulamento dos órgãos de gestão e direcção dos hospitais”, da autoria do Dr. Paulo Mendo, então secretário de Estado da Saúde, que estipulava a eleição do representante médico e do representante de enfermagem para o designado “conselho de gerência”.
Esta revogação instaurou a lei do comissariado político nos hospitais, passando os membros dos órgãos de gestão a serem nomeados na base de meros critérios partidários.
Na primeira de etapa de nomeações ao abrigo deste diploma assistimos a situações inacreditáveis para presidentes de conselhos de administrações.
Desde professores primários reformados, a militares na reserva, a presidentes de comissões políticas concelhias partidárias até comerciantes de facas e canivetes (isto foi mesmo verdade no Hospital de Guimarães) viu-se de tudo.
Os profissionais de saúde, particularmente os médicos, passaram a ser tratados como “inimigos internos“ e a prestação de cuidados a ser alvo de inúmeras tentativas de condicionamento profissional.
As instâncias de participação e de responsabilização profissional foram sendo gradualmente liquidadas para que os comissários nomeados controlassem tudo o que funcionava.
Por exemplo, os conselhos médicos, a quem competia “pronunciar-se sobre o rendimento médico do hospital e propor o que julgar útil para a sua melhoria” desapareceram.
Apesar de todas as evidências sobre a manipulação político partidária das nomeações, nunca nenhum governo teve a dignidade de romper com esta tentação totalitária.
No final da década de 1990, a então ministra da Saúde Maria de Belém Roseira publicou um diploma para a eleição do director clínico, mas um seu sucessor, do mesmo partido, tratou logo de revogar estes “maus exemplos”.
A gestão é um dos fatores que maior erosão tem provocado nos serviços públicos de saúde. A não prestação de contas dos nomeados e a ausência de mecanismos de avaliação do seu desempenho tornam esta situação insustentável.
Quando tem existido a extrema necessidade de demitir alguém por más práticas gestionárias, logo de seguida, nalguns casos, são nomeados para outra entidade pública de saúde.
2 – Sempre que qualquer governo tentou desarticular o SNS, começou por iniciar a sua cruzada contra a carreira médica.
As enormes mobilizações reivindicativas dos médicos em 1988 e 1989 impuseram a um governo de maioria absoluta uma clara derrota política e obrigaram-no a negociar um novo diploma das carreiras médicas que as tornaram no plano organizacional e salarial mais atrativas.
Os vários governos acabaram sempre por reconhecer que o SNS e a estão umbilicalmente ligados. Sem SNS não há carreira médica e sem carreira médica não há SNS que possa funcionar.
Falo da carreira médica, porque sou médico, mas as restantes carreiras de profissionais de saúde foram conseguindo ao longo dos anos desenvolvimentos funcionais e de conhecimentos que as tornam igualmente importantes para o sucesso do SNS.
Esta clara compatibilidade entre SNS e carreira médica está também elucidativamente demostrada pelo facto de nenhum dos grupos económicos privados se ter alguma vez disponibilizado em negociar um sistema de carreira médica para os seus estabelecimentos de saúde.
3 – Em 2008, o então ministro das Finanças Teixeira dos Santos desencadeou em nome governo uma reforma da Administração Pública que se revelou desastrosa para a área da saúde ( Lei 12- A/2008).
Ao eliminar os corpos especiais e as suas grelhas salariais especificas, eliminou também o regime de dedicação exclusiva opcional. E ao introduzir medidas cegas e formatadas no regime de aposentação levou a uma debandada prematura de milhares de médicos que na sua fase de maior diferenciação técnico-científica deixaram uma lacuna brutal na capacidade dos serviços a nível formativo e de enquadramento profissional.
4 – No desenvolvimento da crise financeira internacional, a OCDE em 2013 veio afirmar que o governo de Passos Coelho tinha cortado na saúde o dobro dos cortes que negociou com a troika e que a maior parte desses cortes foi a nível do pessoal.
5 – As anomalias nas urgências têm-se sucedido nos últimos 10 anos, nomeadamente nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra, com diversas especialidades a funcionarem rotativamente por vários hospitais, com a designação de “urgências metropolitanas”.
5 – Por outro lado, nos últimos 20 anos assistimos ao aparecimento de um negócio altamente esbanjador dos dinheiros públicos que foi a entrega de uma parte substancial das escalas de urgência a nível nacional a empresas de cedência de mão de obra médica, tornando-se uma prática altamente desreguladora do funcionamento hospitalar, lesiva da qualidade dos cuidados prestados e profundamente desmotivante para os médicos de cada instituição, dado que médicos dessas empresas ganham à hora 4 e 5 vezes mais, mas quando os doentes são internados são eles, “os da casa”, que têm de assegurar a continuidade assistencial.
6 – Vencendo todas as contrariedades e tentativas de perversão da carreira médica, os sindicatos médicos conseguiram assegurar diplomas de contratação colectiva, salvaguardando essa forma de organização do trabalho médico que tem sido um mecanismo inequívoco de garantia da qualidade do exercício da medicina.
Mas, então, o que passámos a assistir? A vários órgãos de gestão dos serviços públicos de saúde a aplicarem ilegalmente contratos individuais de trabalho arbitrários, à revelia dos concursos públicos e da contratação colectiva.
Com estes expedientes, quem tinha ”padrinhos” ficou onde lhe convinha.
7 – A questão das urgências não pode ser abordada sem uma íntima ligação ao contexto organizacional de todo o hospital e à dinâmica laboral dos profissionais de saúde.
De há muito que os sinais estavam todos visíveis e sua previsível evolução não foi interrompida.
Este tipo de situação já se tinha verificado em menor escala, também com a obstetrícia, em 2008, e o resto dessa história conhecemo-la bem.
Neste contexto, não há mais lugar a soluções de “remendo”, porque cada crise se apresenta sempre com uma dimensão maior e mais devastadora.
Apesar de andarem por aí alguns intervenientes a mostrarem muita preocupação com esta situação, importa verificar até que ponto não têm pecados graves anteriores.
A raiva contra o SNS de alguns quadrantes políticos, leva-os até a recorrer a hipotéticas ligações entre esta situação e o encerramento de PPP.
O que é grave é que nenhum ministério apresentou qualquer avaliação do impacto deste modelo de gestão para o dinheiro dos contribuintes.
António Arnaut: “Ó Costa aguenta lá o SNS”.
É urgente uma abordagem global da situação.
E essa abordagem implica, de acordo com a minha experiência de negociações com os sucessivos ministérios da Saúde de 1982 até 2017, os seguintes pontos nucleares:
- Imediata revisão da Carreira Médica, com o retorno do regime de dedicação exclusiva opcional, com a valorização do trabalho na urgência e do trabalho na formação médica.
- Medidas de desburocratização do trabalho médico, possibilitando a rentabilização do seu trabalho, libertando mais horas para aquilo que eles sabem fazer, ou seja, observar e tratar os doentes.
- Estabelecimento de uma carta da gestão pública da saúde que implique a aplicação de critérios de mérito e de adequada qualificação profissional para o desempenho de cargos de gestão, de avaliação e responsabilização dos órgãos de gestão, de criação de patamares de autonomia de funcionamento dos serviços e o recurso a instrumentos como contratos-programa, bem como a eleição dos diretores clínicos na base de um programa sujeito a avaliação e a limitação de mandatos.
- Uma política transparente de concertação social com as organizações do setor. Negociar e dialogar são atos de inteligência e só foge a eles quem não tem um projeto e um programa de ação para este setor tão valorizado pelas populações.
- Avançar com a implementação prática da reforma da Saúde Pública, dadas as delicadas implicações que isso possui.
- Constituir uma comissão para a reorganização e redinamização do SNS, que em poucos meses se comprometesse a apresentar uma proposta bem fundamentada ao Ministério da Saúde.
A Saúde é o assunto mais valorizado pelos cidadãos eleitores e é aqui que se joga muito da evolução política geral.
E de tal forma assim é, que esta situação agudizada na saúde tem dado pretextos para um acrescido protagonismo das forças totalitária de extrema-direita.
Pouco tempo antes de falecer, António Arnaut disse ao primeiro-ministro, de acordo com várias notícias vindas a público:
“Ó Costa aguenta lá o SNS”.
As notícias não referiram qual o compromisso que eventualmente terá assumido o primeiro-ministro, mas se o Costa não aguentar o SNS vai ficar registado como o seu coveiro e a História e os eleitores não lhe irão perdoar!