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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Sobre a flor, a pedra e o grito: a poesia de Craveirinha

A poesia de Craveirinha, não se resume à lírica de combate; ela inclui ainda poemas satíricos, erótico-amorosos, experimentais, formando uma obra rica e variada que merece ser melhor conhecida pelos leitores brasileiros.

José João Craveirinha, poeta moçambicano, nasceu em Lourenço Marques, em 1922, há cem anos, e faleceu em 2003 na mesma cidade – rebatizada como Maputo, após a independência do país. É considerado o poeta nacional de Moçambique, por expressar o sentimento libertário de seu país contra a ocupação colonial portuguesa, denunciar o racismo, a censura, a perseguição política e cantar a liberdade, a identidade cultural e a integração regional das nações africanas.

Desde a juventude, Craveirinha engajou-se na luta contra o colonialismo português, sendo militante da Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique, de orientação marxista. Por sua atividade política, foi preso em 1936 e libertado apenas em 1969, passando mais de três décadas na prisão. Além de poeta, foi jornalista, trabalhando em periódicos como O brado africano, Notícias, Tribuna, Diário de Moçambique e outros veículos. Por causa da censura salazarista, utilizou diversos pseudônimos, como Mário Vieira, José Cravo e Jesuíno Cravo.  Ele foi o primeiro autor africano a receber o Prêmio Camões, o mais importante das literaturas de língua portuguesa, em 1991. Craveirinha publicou cinco livros de poesia de 1964 a 1984, entre eles Xigubo,  Karingana ua KaringanaMaria, volume de poemas líricos e elegíacos, Babalaze de hienas, com poemas satíricos, e a obra póstuma Poemas eróticos, além de livros publicados na Rússia, na Itália e de um espólio de centenas de poemas que permanecem inéditos. No Brasil, foi publicada uma antologia poética do autor pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Em Xigubo, seu livro de estreia, predominam os poemas longos em versos livres, com uso frequente do enjambement. Conforme escreve Emílio Maciel no texto crítico incluído como posfácio a esse volume: “Nos poemas que compõem a rapsódia anticolonialista de Xigubo, é certo que a balança ainda pende claramente para o lado da memória coletiva, resultando em artefatos nos quais a evocação de uma identidade mítica corre de par ao gosto por interpelações exclamativas e densos catálogos em intrincados labirintos sintáticos. (…): Avançando à base de violentas condensações e curtos-circuitos, muitos dos poemas reunidos em Xigubo parecem extrair sua força das cesuras imprevisíveis que suspendem o sentido ao fim de algumas linha, impacto reiterado pela contundência de pormenores concretos que dão qualidade tangível  ao intolerável”.

Esta tendência à  condensação, à elipse, ao fragmentário, estará mais presente na poesia da última fase de Craveirinha, também mais concisa, metafórica e enigmática, em consonância com a poesia de vanguarda angolana e moçambicana da época. Em Xigubo, notamos ainda a ênfase nas imagens, que Ezra Pound chamava de fanopéia, e os maciços blocos rítmicos que causam um efeito quase encantatório, pela repetição anafórica de palavras ou pelo uso do refrão. Temos por vezes a impressão de ouvir o som de tambores, os tantãs, mencionados em vários poemas. Assim acontece, por exemplo, no poema

Grito negro

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.

O título do poema já é um expressivo oxímoro, que atribui a cor negra à vibração sonora incolor de um grito. No verso inicial, “Eu sou carvão”, temos uma metáfora polissêmica, que indica não apenas a cor da pele do poeta, mas ainda a atividade econômica à qual ele é submetido. Podemos até perceber aqui uma hipérbole, já que esse “eu” não é apenas o eu lírico, a persona do poeta, mas um eu coletivo, os trabalhadores negros das minas de carvão em Moçambique, ou, ampliando mais foco, todos os trabalhadores negros de uma África espoliada pelo colonialismo europeu. Outra possibilidade de leitura desse verso é o da desumanização do sujeito, que passa da condição de ser vivo a mineral, coisa, mercadoria. A luta de classes e a luta anticolonialista são apresentadas aqui numa única representação simbólica: quando Craveirinha escreve

Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.

Ele apresenta o carvão não mais como a lucrativa matéria-prima que será enviada para a Europa, para uso na siderurgia, e sim como o combustível no qual será  queimado esse patrão branco, ocidental e capitalista que o oprime. Temática similar está presente no poema Xibugo, que dá título ao volume, e dedicado a Claude Coufon:

Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!
.
Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
.
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
.
Dum-dum!
Tantã!
E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
.
E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.
.
Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.
.
E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.

Xibugo é uma dança guerreira e aqui ela é a representação sonora e coreográfica da luta anticolonialista. Logo no verso inicial, “Minha mãe África”, temos a figura da prosopopeia, que atribui ao continente características humanas; essa figura de linguagem continua nos versos seguintes, “meu irmão Zambeze / Culucumba! Culucumba!”. Zambeze é um rio da África Austral, e Culucumba é uma palavra traduzível como espírito, Deus ou algo muito grande ou poderoso. A prosopopeia também aparece no verso “e negrinhos de peitos nus na sua cadência / levantam os braços para o lume da irmã lua”. Ao reconhecer o continente africano e a Lua como seus parentes, comparação também hiperbólica, Craveirinha afirma a unidade territorial e cultural da África, a integração com os outros países do continente, com a natureza e com o universo, numa dimensão quase épica e metafísica.  A imagética do poema recupera a paisagem natural africana e os costumes tribais, com a incorporação de palavras como xipalapala (instrumento musical semelhante à vuvuzela), ao leopardo, aos tantãs, à micaia (árvore muito alta), às “danças do tempo da guerra”, à “fogueira amarela”, entre outros exemplos.

O poema, que alterna linhas curtas e longas, é extremamente rítmico, por vezes até utilizando onomatopeias, como “dum dum”, para representar o som dos tambores. O caráter guerreiro está presente em figuras metonímicas, como a catana e a azagaia, espada e lança utilizados pelos homens da tribo. A exaltação guerreira é mais enfática na última estrofe, quase uma convocação para a luta contra os portugueses:

E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra

das velhas tribos juntas na margem do rio.

A poesia de Craveirinha, porém, não se resume à lírica de combate; ela inclui ainda poemas satíricos, erótico-amorosos, experimentais, formando uma obra rica e variada que merece ser melhor conhecida pelos leitores brasileiros.


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG  |   Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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