– saudades de lisboa, de benfica, há que tempos não vejo os golos do Eusébio!
XII
A ferrugem a rasgar-nos a farda ainda cansada, zumbidos de cigarras empoleiradas à janela ainda aberta para soçobrar restos de vento, recebidos como heróis e abandonados a seguir, a banda do exército esperava-nos onde que sentinela à proa incentivava cânticos sobre o regresso de que heróis desta pátria despida de sensações, muitos já de barba em punho e cabelo por aparar, o cansaço por nos sentir morrer de tédio, procuro por alguém e nada, a solidão é enfadonha, irritante, não termos quem nos receba depois de tantos anos a combater em nome de quem?, foi por todos nós, dizem os estatutos do estado a falir o regime, nem Salazar se cansa de viver e morrerá numa cadeira, agora que sei que morreu apenas cantarei glória.
Um mês no mar onde só solidão e tédio, a recordação de tanto e nada para recordar ou esquecer, agente perde a memória, o sargaço envenena-nos a todos, somos cuspidos do navio como vespas azucrinantes, cuspidos como filhos da outra, esta mesma nação que nos venerou enquanto activos na mata.
– o meu filho foi combater para defender o nosso país!
Qual país qual quê, dizia outra voz escondida vinda do fundo onde tantos se esquivavam,
– não quero aparecer nas fotos!
e agente ali, como estranhos de um lugar que sempre foi nosso.
Mas que país?, o meu país é este, onde nasci e me tornaram soldado contra a vontade,
– saudades de lisboa, de benfica, há que tempos não vejo os golos do Eusébio!
a telefonia cansada e sem pilhas, onde as comprar sem as que me mandas de lisboa?, queria ouvir as notícias do meu país, saber de ti e de tantos que ficaram e pensam em nós soldados num longe tão desconhecido para nós, onde só mato e selva e fauna isto é lindo amor, mas não para lutar contra quem quer que seja, não nasci soldado, fizeram-me sê-lo e que vontade a minha?, nenhuma!
Cada um é para o que nasce, a nossa sina embeleza-nos o caminho, rimos e choramos e tudo flui com uma naturalidade inexplicável, cantamos, sonhamos, à página tantos nada somos ou nem sequer estatística somos, vivemos o momento, acredito, e nele somos tudo o que formos, nada mais do que isso. Um balázio aniquila-nos, uma memória perdida faz-nos esquecer a existência, a vida flui como rios que desaguam num oceano qualquer e depois mar na mesma, somos resquícios da existência, dos valores em nós acumulados, somos viajantes permanentes do tempo e nele apenas seguirmos como passageiros da verdade do tempo em que ela for verdade.
Em cada trilho, picada, emboscada, somos caminhantes deste ofício a que nos obrigam, somos soldados de tantos nadas neste percurso chamado obrigação, vendemo-nos pelo medo e sussurramos lágrimas à hora de nos deitarmos, somos imensos nadas, nadamos filantropias nestas camas de pássaros, cantamos hinos e perdemo-nos nesta escória de pátria nenhuma, somos entretanto vendidos ao inimigo que desconhecemos e voamos espasmos de sangue branco. A febre aperta e de que maneira dói, o corpo sangra saudades e nostalgias e tu longe, o meu país entregou-me a que nem sequer sei, não fui o único mas sou mais grita, rejeita esta condição de soldado no desconhecido, sou uma formiga flamejante neste mato verde e escuro tantas vezes castanho, onde que escuro a inebriar-nos o destino, qual coisa qual quê, somos míseros viajantes de que desejo o meu país que me abandonou.
A vida esgueira-se branda e o sol brilhante encosta-se aos postigos de azul transparente transformando a cidade em cada canto da viagem, recordo-me da minha mãe na cama deitada e doente a gemer comprimidos pequenos contra as dores de cabeça, o meu pai no hospital ainda a transformar ossos em carne viva saltitam solavancos na cama e ela lá, deitada como um anjo.
Sob que luzes de sonho a minha ribalta, nesta batalha o sonho é efémero, tudo é coisa de instantes e a vida navega ou naufraga consoante o momento, as coisas biliosas a sufragarem o segredo de onde nada se refrange, onde beliscos e a alma em viagem nestas paisagens sonhadas ou por sonhar, as cartas ainda na lapela da alma para recordar cada instante como se fosse de facto o último a brilhar num coração evaporado. Os batráquios relatam o seu sono eu sinto ainda que sonhos, a vida empedrada nesta caserna amor, onde a minha felicidade sem ti, onde para a minha filha de que pai desperdiço ao seu crescimento, sinto saudades e tudo me vai matando aos poucos, morro como os meus soldados sem pátria nem paz, vivemos circunstâncias, sabes, circuitos mórbidos e corredores recheados de dor, de gritos e vómitos como se um fim ali, o regresso a lisboa é uma constante que nunca se esfuma e nem sequer cansa, onde trás os montes ainda?, onde que beijo Maria, onde a matança do porco hoje, a minha mãe velhinha e eu cansado já.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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