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Sábado, Novembro 2, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

pergunto tantas vezes sem resposta, o nada não diz nada e tudo floresce ao desbarato, estou cansado de ser nada nestas matas onde estou ainda com as memórias vivas

XIV

Ainda o ruído nesta calma aparente, a voz que me chama todos os dias e eu nesta caserna sem sono e que insónias, o pensamento em viagens permanentes como se de um goivo se tratasse, os albatrozes sobre as águas escorreitas deste rio imaginado sento-me na cama que me recebe, a voz de Deolinda ainda nas minhas visões, as cartas ainda por ler e tantas lidas,

– Santa Paola nos teus braços!

– o pai está a chegar!

chegando garantidamente, um dia o navio que nos trouxe irá devolver-nos ao mesmo cais de onde partimos há que tempos, recordo ainda os quantos éramos e não sei quantos regressaremos, partilhar as mesmas emoções de quando deixávamos lisboa, alcântara, cais do Sodré, a minha mãe estiolada e esmerada,

– fica com Deus meu filho!

o meu pai num consultório,

– o meu herói vai defender a pátria!

sentado onde que pacientes à sua frente receitas para que gripe, eu no início da ida para o desconhecido a não ser o velho mapa do mundo, província portuguesa de angola, vamos defender o nosso ultramar além-mar partindo no ainda novo Dom Afonso Henriques.

Esta comissão de lágrimas, este desejo, um dia quem serei depois da missão cumprida, não me sinto capaz garanto, não nasci para isto e como rejeitar, como dizer não onde que ditadura a ofuscar-me essa obrigação, qual sim ou não o império pertence-nos, não a mim, sou filho de lisboa e onde os meus irmãos?

Sigo com camaradas, sigo sem rumo, sinto um frio sei lá, uma dor escondida nos escombros desta cabeça a desfazer-se a cada légua. Os meus irmãos na faculdade um dia a sua chamada ao cumprimento da pátria, a minha irmã no curso de direito um dia a minha defensora e eu neste mar de espuma a embrenhar-me de memórias, a minha mãe na cozinha a esta hora cozinha silêncios, o almoço à família rejubila a mesa posta e eu longe ainda se em que mar a navegar para um regresso que nunca mais chega. Estou cansado pá, farto desta lamechice de herói descansando mágoas, na ferrugem do navio velho e cansado de quantos militares já transportou, o meu quarto ainda sem mim, a minha sala, a minha vida e eu aqui, onde, pergunto tantas vezes sem resposta, o nada não diz nada e tudo floresce ao desbarato, estou cansado de ser nada nestas matas onde estou ainda com as memórias vivas.

(s.d.), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114091 (2020-7-5)

Longe e perto o mar fervilha em ondas de solidão, o escuro aparece e nós a jogar às cartas, uma felicidade para quem quer esquecer-se de que dilúvios, estou cansado pá, o meu jogo preferido é o xadrez e a vida joga-se em cada esquina, a noite decorre e desliza sobre nós como uma fantasia contada em criança.

Vejo gaivotas serenas, voos perspicazes sobre as ondas bravas deste mar salgado, a bandeira oscila sob que ventos no convés, o branco que brilha no pelo e elas sozinhas num grupo e nós sozinhos num grupo de recordações, a minha existe ainda? Para trás a ainda baloiçava sobre a mata cânticos de glória, balas disparadas onde que ruídos espantam, o medo não era a mata, nem os tiros perdidos porque arma disparados, o medo era o desconhecido por que caminhos andávamos. Plantações de café indetermináveis e nos sorvendo maduros o doce do café, a memória não dorme, acredita, acredito também nas tuas saudades destes discursos onde cartas respondidas e desabafos funestos, um cobarde chora e eu chorei sem em ti sentir como tal, fugi não por ser cobarde, o medo assusta, a mata fervilha e as copas de árvores lindas atravessam a estrada de lado a lado e macacos pendurados saúdam a nossa passagem.

Chuvas e lama, o jeep grita sem desistir e nós sem o sentir, a gente sabe que tudo isto é nada um dia, um dia calabouços nas estepes da nação sozinhos e entregues ao nosso destino, um dia em enfermarias psiquiátricas curar do sargaço desta aventura de guerra a que a pátria nos obriga, estou cansado pá, tudo isto é nada à noite depois de um sono bem-vindo, e volta ao mesmo pela madrugada, tudo será recordação, arquivos escondidos num peito derrotado por viagens vazias nas selvas deste lugar tão lindo, um verde-seco a cobrir-nos intenções, incursões pela savana onde que deserto plantas do deserto cansadas, Welwitschias sóbrias descansam o seco do deserto, o norte de Angola amor, o negaje, o songo, o quitexe, o meu aposento é carmona farta de mim, o Telesfro Afonso português vencedor do rally do Uíge, eu a apreciá-los numa varanda qualquer o meu pai sentado a meu lado, lisboa longe e o meu pai a meu lado, o Telesfro trata dos cafés depois das corridas de rally durante a semana, carros preparados e lindos iluminam a cidade e madrugada e a gente lá, vê-los como heróis chegarem depois de tantas horas e desporto lá, onde nós soldados cansados e sentados na varanda do quartel a observá-los.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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