Quanto tempo levarei a entender que regressei?, a floresta renasce sabes?, tudo é tão real nesta cabeça estiolada, tudo é presente neste jeep a diesel velho e cansado
XVI
Recordo Camélias, Orquídeas, Franciscas, todas elas à espera de um soldado perdido, das que esperam ninguém frente a um cais de evaporados, mas regressados, recordo abandonados e esquecidos à saída de um barco cheio de dores, onde que prostitutas nos aplaudem com gritos,
– bem-vindo o teu regresso meu herói!
o olhar parado num instante e sem reagir que voz, quem nos espera ou ainda se recorda de nós após estes anos numa mata qualquer inventar vida para sobreviver, o olhar de viúvas esquecidas, o vazio frio de mães sem filhos e filhos de outras mães,
– tiveste mais sorte que eu!
dizia uma mãe revoltada,
– o meu Zé voltou da guerra!
cais do sodré repleto e a gente ali, paramos sem nada perceber, a viagem ofuscou-nos, a guerra fez-nos esquecer romantismos e sentimentos onde a minha Joaquina, qual Joaquina, anos depois onde que casamento, ficou um vazio repetido entendes?, todos se esqueceram e nós ainda vivos, na memória tiros e granadas, as minas e o jeep capotado,
– você entende de guerra?
– não.
– cale-se!
há histórias na vida da gente que nem a gente entende, os passos são largos e o capim oculta, o ruído silencia e o norte desperta onde que granadas,
– escuta-me apenas.
preciso de sorrisos onde que sorrisos eu ausente, o tempo queimava o tempo onde que tempo, redundância esquecida nesta selva de sementes por plantar, a gente sabe sentir o que na realidade vive e quem entende o meu silêncio?,
– escuta-me apenas.
é um estranho contraste, perceber que ter de entender a vida de novo e que vida?, esse abraço não basta, esta multidão não é minha porquê heróis?, não basta, quem me remove os momentos de sangue na lapela?, quem me diz do meu destino?, sou ainda soldado sabes?, na cabeça tudo é ainda tão presente, mais que este momento, mais que qualquer abraço ou sorriso, sou um soldado perdido nos anos em que me impediram de crescer e ser gente, um homem a quem foi obrigação matar, quem me tira esse tormento?,
– estou calado caraças!
ainda no consultório a alma lá, os meus soldados e que fiz se consegui, formei-me para curar e não matar e porquê isto?, nunca me consegui tornar num soldado, nunca o fui ou pelo menos sentir sê-lo, plantações de café sabes?, eucaliptos imensos onde que cheiro a limpar pulmões, onde que ar a refrescar saudades, tudo era um paraíso na inocência consciente de soldados perdidos e as caminhadas, longos dias a pé e que mata, as aldeias repletas de gente a receber-nos, a memória não morre, a gente sente o frio de cada instante, o calor de cada abraço, o olá de cada amigo, ali tudo é sentido de forma mais sentida e profunda, há uma solidão colectiva a corromper-nos a alma, uma viagem, gente diferente como?, minas e bombas para onde?, o acampamento comigo nesta comissão de lágrimas.
Onde agora?, tudo isto me parece tão estranho, sinto um frio que nem sequer percebo, onde as matas?, onde as saudades?, tudo estranho assim tão de repente, tudo num repente num navio cheio de almas ancoradas às memórias de quem nunca esquecerá uma guerra que nunca nos pertenceu, apenas soldados lançados ao fogo que nos eliminou amigos, camaradas, as minas em cada passo e o Esperança sem fome, é horrível conseguir lembrar se é verdade, vou dormir uns dias acredito e acordar, mas acordar onde?
Quanto tempo levarei a entender que regressei?, a floresta renasce sabes?, tudo é tão real nesta cabeça estiolada, tudo é presente neste jeep a diesel velho e cansado, o consultório repleto, tudo é ainda isto, o momento, e cais do Sodré ali, o mar onde navios partem seguindo rumos e descobertas e nós perdidos, cansam-me, entendes?
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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