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Domingo, Dezembro 22, 2024

Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Ao António Lobo Antunes.
Aos combatentes da guerra colonial, tão inocentes quanto eu.

I

Não há pressa para nada e de tempos em tempos o silêncio é necessário. Cada árvore, cada folha, um papel rasurado na mesa encostada ao caixote do lixo dizer besteiras com palavras tão profundas, hesito madrugada ainda e com a caneta na mão direita, qual computadores qual quê, as vozes rangem lá longe e eu sentado nas memórias, ainda a guerra colonial nesta cabeça dorida pelos pensamentos vadios que me invadem todos os dias, o soldado estiolado a meu lado, eu longe de casa, nasceu a minha filha e eu nem lá, remédios para me acalmarem,

– tem paciência Deolinda!

aqui tudo é frio por dentro, socorro amigos estripados pelas balas da noite, não durmo há dias e saudades

– Deolinda.

(como sempre amável)

sei que esperas por mim

– como estás?

lamento esta solidão que te deixo, é assim, tropa

– nunca mais me enviaste cartas!

neste ruído de balas frequentes o cabo

– atenção doutor!

salta do seu canto, corre em direcção a mim, um soldado na enfermaria com as tripas de fora que fazer, ali a seu lado eu, agulhas enferrujadas, empurro-as para dentro enquanto o coso sem luvas

– ele vai morrer?

não desisto de rematar contra estas balizas onde a vida mora, a minha cabeça baloiça entre memórias e saudades e longe de casa esta guerra no norte de angola, curo-me também entre remorsos e incapacidades

– se não o conseguir salvar parte de mim morrerá também?

de um médico abandonado numa obrigação, aqui na mata a viagem nocturna desconhecendo completamente onde estava, o barulho do jeep a diesel velho nem tanto nesse tempo

– Deolinda!

gritava a minha voz para dentro tentando encontrar na recordação algo que me desse forças e continuar

– estou bem, acredita!

não ouvia, o que me fazia saber disso?, falta das cartas, saber de ti, da nossa filha nascida sem pai perto, e tu, abandonada sem estares de facto abandonada, a guerra chamou-me e nada podia fazer a não ser fazer como tantos, exilar-me em frança ou desertar mas aprendi, comecei a sentir a responsabilidade ignóbil de médico salvar ou divinamente conseguir evitar que morressem camaradas,

– a força que tens miúda!

graças a Deus, um lugar ausente, impresente, este escuro sem sombras calam-me qualquer ideia, tantas vezes perco a noção de mim, calo-me,

– cala-te!

o cabo nervoso a meu lado a enervar-me mais ainda, a minha mãe a morrer de tédio e velhice e eu nem lá, mais uma granada explode e eu neste bloco improvisado, sangue e raiva porquê estar nesta guerra que não entendo, na minha cabeça a minha filha acabada de nascer meses depois e já um ano é ultrapassado

– a força que tens meu amor!

o consultório do quartel que consultório, uma tenda verde cobria-nos num improvisado desejo e compromisso de salvar era tudo o que desejava enquanto definhavam camaradas nas minhas mãos.

O meu pai regente negoceia o meu regresso a minha mãe na costura nada me espanta, cansado deste regime onde um salazar me quer, há milhares de homens como eu sem pátria nesta terra de outros vomitar mortos pelos terrenos imensos

– luanda?

a caminho, noite de nada me apercebi o caminho no breu sem estrelas o jeep caminhava, o motorista calado

– acho que vamos para Luanda Doutor.

naquela picada infinita e sem relógio, mato e mato ladeavam a viagem, não era turismo, meteram-me nesta guerra onde apenas aprendi a ver gente morrer

– ai!

suspiro para dentro não por medo, mas por não perceber, quanto mais o motorista, deixei o cabo Silva algures no norte e o soldado cosido com ferrugem e truques se o salvar foi conseguido. Uma granada ou mina sei lá explode mesmo à nossa frente

– calma, porra!

saltavam do jeep todos tive que berrar, parecia carneiro sem saber sequer onde estava

– continua pá!

ao lado do buraco que havia na picada iluminada pelas luzes do jeep

– tens mulher?

a resposta calada, o soldado quase analfabeto e com mais medo que eu, e se medo, medo nenhum, não adiantava ter medo, acreditem, fomos metidos de forma igual nesta masmorra e guerra, colonial sentença, herança do fascismo que sempre abominei, mas ser preso também, nunca tive coragem para desertar,

– onde tens os tomates?

continuamos, o dia a aparecer numa calma tão linda e nós tão feios num mato estranho e tudo estranho, a picada desconhecida sem gps a vadiar, era mesmo.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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