para quando o fim desta comissão de lágrimas?, até quando suportar ordens que sem sentido nos obrigam a morrer de tédio, por quê nós nesta guerra que não nos pertence, sei lá, matar quem e porquê?
XIX
Hoje seria mais feliz ainda se estivesse contigo. É o teu aniversário e tu só, sem mim, aqui dispersado numa mata sem limites e onde o horizonte é escuro. Tu em casa, creio, e as tuas cartas por chegar ainda, a minha Santa Paola contigo embrulha-se no teu colo e o pai longe sem culpa nenhuma. A idade dela paira-me ainda nas saudades, deixei-ta numa barriga ainda por descobrir se estavas ou não grávida desse paraíso chamado Santa Paola, a nossa filha. Inventei-lhe esse nome para honrar o nosso amor santo e perfeito, sabes?, enviada numa dos milhares de cartas trocadas entre nós, das coisas que sei entenderes-me e eu correspondia sempre nesta masmorra sem dentes. Uma brisa lenta abraça-me enquanto viajo dentro de que alma só minha, uma saudade permanente entranha-se-me nos poros e leva-me por instantes com ela, percorro todos os sonhos e momentos onde recordações nunca se cansam de me instigar, pergunto-me no meio delas onde a vontade e respostas só eu para mim mesmo pensando-te sozinha e eu sem ti, eu aqui, numa zona de acção enorme e o batalhão a percorrer noite e dia esta batalha de verdes e secos nas altitudes de árvores que badalam a cada vento, ventos cruzados amor, ensinam-me a decifrar os códigos de morse e o soldado de rádio na mão indicando-nos por onde seguir em mais segurança. O jeep ilumina-nos o caminho que seguimos, as pedras e os buracos inesperados desconfortam-nos, a gente indiferente, o nosso rumo é seguramente uma paz a encontrar e um dia encontraremos, queiram ou não, dizemo-lo nós, soldados destacados para esta missão de paz, de lágrimas. Tantas vezes imagino tudo isto como se fosse um sonho, uma dispersão, uma viagem imaginária, tantas vezes um percurso simples onde se divaga a realidade, nada disto é verdade, nada é real!,
– um dia de cada vez!
era uma voz ausente vinda de sonhos acordado, aqui sem uma esplanada ao fresco beber um café, ler o jornal e saber das novidades, mas apenas as tuas cartas são a única coisa que leio a não ser também os comunicados internos do exército,
– paciência amor!
colado às histórias do dia a dia, soldados mais e mais ainda a minha dor, os recursos parcos e a minha cabeça longe, curo e saro e coso, pontos e mais pontos nas peles feridas pelas granadas e tiros deste desconhecido famoso nas memórias de todos os dias, um diário escreveria todas as minhas emoções, fantasias, pensamentos e histórias de embalar a ver se me convenço a não estar depressivo e nervoso e cansado, sim amor.
A chuva branda lá fora alimenta o arvoredo, da janela observo enquanto penso, a humidade espalhada pela vegetação à volta desta mísera tenda onde tracto e gritos a meu redor sempre, descanso segundos e nada me sacia, tudo é sede e sono pois, não durmo há dias,
– sinto-me cansado Deolinda!
para quando o fim desta comissão de lágrimas?, até quando suportar ordens que sem sentido nos obrigam a morrer de tédio, por quê nós nesta guerra que não nos pertence, sei lá, matar quem e porquê?, acredito que não consigo ser mais que um soldado de paz nesta estação fria do norte de Angola e onde luanda?, tudo fica longe e sóbrios navegam a sua felicidade inocente, a gente a vê-los descer em direcção ao mar se lá chegarem, imagino os quilómetros a percorrer e nós seguindo a sua trajectória, olhos vendados pelo sistema e a política dos nossos patrões a comandarem-nos, sim, na rádio Salazar enfatiza a nossa missão glorificando-nos pela missão ousada e morrer devagar nada o incomoda. Sou soldado à custa de quê?
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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