A importância das coisas está na sua insignificância, na divindade de cada abraço, no olhar imparcial e não só, na vontade que possa imperar cada dia superado, na proximidade a cada casa sem janelas
XXVI
Às vezes, esta voz canta para si mesma os rugidos da tarde. Uma vontade ilimitada espraiada nos horizontes alojados entre quimeras disfarçadas de açudes, um longo corredor onde os sons parecem ventos levados pela ausência de que luz a encantá-los, sim, talvez a metamorfose de cada dia ali passado sentado na berma de que rua desconheça e apenas na memória a sua existência. Um azul ténue deslumbrando-se pelas caminhas de azoto à espreita de novos cânticos como se faziam antigamente, antes ainda do alvorecer.
Uma senhora encantadora espalha o seu brilho com cheiros de perfume francês e eu na mesma, descortinando se conseguir, a origem dos seus passos mesmo à minha frente, a voz encantadora da vendedora de ananases na esquina mais próxima do trânsito cativando e procurando a venda num só gesto.
Ali, como a fazer um trabalho meritório, algo a registar nas enciclopédias dos tempos e por essas bibliotecas espalhadas com as fotos e biografia completa de todos os escritores desta nação escondida de si mesma, desfolhada tantas vezes sei lá, sonho aqui, ao lado do tempo que se vai ao entardecer sem que sequer me aperceba, vontade terrível de ser feliz sentindo-te, mesmo que longe dos meus braços, leio e releio este jornal de ontem onde notícias já consumidas por alguém me despertam a existência de astros sobre a cabeça cansada.
O brilho que já se deita na sua paz sozinho, o descanso prometido pela existência, folhas esvoaçam perdidas sem rumo e sem vontade, o alcatrão na mesma e eu ainda ali na esperança de crianças a abraçarem-me com os seus sorrisos fininhos como neve sobre a minha face de pensador de templos ainda vivos nesta carne alimentada e viva, sim, descubro a cada passo uma vontade nova, algo que me desperta para descobertas em mim mesmo sem que me canse, vivo-as na sua plenitude e sem rumores o meu olhar nelas como uma ave sobrevoando todos os céus que possamos imaginar.
De repente o trim-trim de um telefone qualquer a desviar-me dos meus pensamentos ainda presos na inconstância, na vontade de os libertar para cima dos sonhos que me levam ainda acordado a descobrir mundos de que lado sejam, pouco importa, sinto como me apetece tudo isso num piscar de olhos, um esticar de dedos, sentir as nuvens que viajam para tanto lado sem que se saiba o seu destino embora pouco importe isso. O importante será talvez eu mesmo assumir a minha identidade de cidadão desta distância de todas as coisas que possam flutuar devagar e nunca se perdem.
A importância das coisas está na sua insignificância, na divindade de cada abraço, no olhar imparcial e não só, na vontade que possa imperar cada dia superado, na proximidade a cada casa sem janelas e nelas a mensagem por escrever e mesmo assim colocada no alpendre para que todos possam um dia recordar a minha existência, sim, vivemos todos o abraço da vida, o despertar, a marca que registamos em cada esquina desta rua onde ainda me encontro sentado observando o movimento que à nossa volta gravita.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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