qual tropa qual quê, nasci para ser médico aqui não para a guerra.
XXVIII
Sinto-me cansado e farto amor, conto a cada dia num calendário improvisado riscando cada dia superado o fim desta incoerência que jamais entenderei, aqui ninguém entende nada, qual o motivo para este sacrifício matar irmãos que nos querem abraçar, sinto apenas que da parte desta gente que às vezes consigo ver o mesmo motivo que alegam para nos deixarem por aqui e que razão?, nada faz sentido, tudo é fantasia nas cabeças do governantes sentados à secretaria de um quartel em lisboa e a gente aqui, metidos nas suas alucinações e ganância de mundos só para eles, estes soldados coitados, muitos deles nunca haviam saído das suas pequenas aldeias e nada sabiam do mundo, sem jornais ou televisão receberam quase sem saberem ler o dia da incorporação do exército do estado colonial português,
“dia 06 de setembro de 1970 no quartel, batalhão de infantaria do porto”
aquele navio sem casa hoje, perdido ou afundado na história que enferrujou com a dor de soldados perdidos num lugar de longe, em terras que a sorte nos destinou e levou almas famintas de vida, sabes, eram jovens ainda e que futuro ali, naquela selva de chuva e nem frio, cobertos medo lá, sem hora nem data a vida esquecida ia-se afundado na história de que hoje apenas restem marcas.
A minha mãe já velhinha à janela da cozinha prepara o jantar, pensa e sacode o avental inventado a panela onde irá cozinhar e o meu pai médico num Santa Maria, hospital de lisboa faz a consulta como todos os dias, os mus irmão estudam naquela universidade onde tantos anos frequentei medicina, parti depois de terminar para esta jaula onde a guerra me chamou segundo a jana do governo de Salazar, o navio cheio de rostos já cansados imaginam medos de relatos ouvidos na tabernas e nas casas escondidas da polícia de estado, o silêncio imperava pois, era proibido qualquer reunião mais ainda sobre as coisas do ultramar,
– o meu dia chegou Deolinda, sabes?, eis a carta de chamada para o curso de oficiais milicianos.
as pernas tremiam onde que raivas,
– o meu pai aguenta filho, é a vida, e um homem faz-se na guerra!
qual tropa qual quê, nasci para ser médico aqui não para a guerra. Não vim sozinho mas estava só, todos estavam sós para dentro e na alma o peso reinava, sim, cada um com o seu medo mesmo nada sabendo do que os esperava, o navio repleto abandona o cais lentamente, o horizonte perdendo-se pouco a pouco e a gente dentro, a ferrugem que nos ladeava, isolados naquele mar a ladear o navio também sozinho entre ventos e tempestades e um mês depois luanda, era o destino que a missão nos obrigava,
– não ficarás sozinha Deolinda!
as cores dissipavam-se a cada instante, tudo parecia enevoado ao longe e perto as almas tremem,
– precisamos de rezar, meu capitão!
os soldados nem olhos, onde as cabeças sem rumo?, sentados até ao convés e a farda ainda com o brilho do novo, boinas com a goma davam-lhes uns brilhos estranhos naquilo tudo nada era senão isso mesmo, tudo estranho, ninguém conseguia perceber de nada, uns conversavam tentando esquecer que medo viria ainda, outros pálidos esperam o encontro com o destino perdem-se mesmo assim, a fome aparece e nem fome,
– que raio de peixe é este?
na aldeia a matança o porco e nós sedentos, porcos também, sentimos saudades de tudo já e nada ainda começou a não ser esta viagem até ao que desconhecemos.
Ainda o adeus de milhares, o cais repleto de lágrimas e choros profundos,
– viu a minha Maria capitão?
a aldeia deserta todos ali, o cais parecia o nascimento de um novo mundo: o da saudade eterna.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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