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Sábado, Novembro 2, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

As cartas viajam por entre as mãos da censura sabes?

XXX

As cartas viajam por entre as mãos da censura sabes?, sinto-as amarrotadas em cada leitura e tu longe, escrevo ainda neste deserto umas linhas que a cabeça dispara para que me sintas na nossa casa, um beijo que nunca dei à nossa Santa Paola crescidinha já, imagino. Há quanto tempo não me envias fotos.

Chove por agora e o calor é tanto, caminho ainda assim sobre as gotas que aos poucos me molham e a cabeça refresca em cada ideia, tudo é presente e ausente ao mesmo tempo, o espelho da nossa casa aqui diante toda esta floresta que me abraço ao anoitecer, caminho sem que saiba sequer onde ir, sabes, para onde ir?, não há montras nem centros comerciais por isso caminho sem o reflexo dos vidros iluminados e lisboa ainda aqui como se nunca nada tivesse acontecido.

Alem dos camaradas que vejo morre curos outros tantos, não tenho mãos para tanto, as enfermarias lotadas e gemidos enfadonhos, sabes?, o regresso um dia qualquer e quantos comigo?, levamos caixões na memória e quantos camaradas nunca mais foram vistos. A gente percebe o fim da vida, ouvimos o silêncio dos que partem e ficamos isolados e desolados, a guerra mata de verdade, sei como é horrível combater contra ninguém e apenas imaginando um turra por trás de qualquer árvore ou deitado num capim vasto, vemos sangue espalhago cada vez que avançamos e as trincheiras disfarçadas de lugares comuns como algo que na verdade nos proteja mais de balas perdidas ou intencionais contra a nossa cara, rebentarem-nos miolos e num ápice já tudo se transforma em dor.

Das cartas que te envio imaginas o meu filme, sei que sabes e como percebes Deolinda, a voz calada a dizer mais que mil palavras escritas.

Aqui envelheço, verdade, a vida não corre e a gente ali sentados sentimos a terra tremer sobre os pés, sinto granadas e obuses de verdade, um tiroteio que nunca mais termina e as ambulâncias de campanha entram no acampamento repleta de feridos, o acidente do jeep, outro entre tantos nestes tempos infinitos capotados ou atirados por minas contra a folhagem farta das matas.

Encontramos gente que nos acena e quer abraçar, oferecem-nos o pouco que têm e comemos sentados e juntos,

– vocês são mesmo de onde?

vozes que nos questionam e a gente responde, um churrasco de galinha do mato mesmo com as mãos devoramos,

– parece a matança do porco na minha aldeia capitão!

o Alfredo resgatado por Franco a meu lado sacode a farda,

– parece mesmo o meu alentejo!

lá fora escurece devagar e conversamos disfarçando a nossa pena, sim, sentimos pena de gente assim, que nos aplaude quando passamos como se fossemos salvadores da pátria mas não somos, fomos enviados para matar!, matar porquê, formai-me para que ninguém morra, o meu ofício é de tratar gente doente, curar, sarar feridas e nem sempre as mesmas que aqui conseguimos e morrem camaradas, sim, quantos perdi sem que me recorde sequer o número?

A povoação caminha, todos se recolhem sob o escuro que vai surgindo, apenas as luzes dos jeeps iluminam as casotas que nos acolheram por instantes saboreando a galinha do mato que irmãos nossos nos ofereceram.

E nós novamente a caminho, pegamos nos jeeps e voltamos para o acampamento depois de mais uma jornada horrível a não ser aquele momento que levarei na cabeça para lisboa.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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