Feridos lá dentro e cosidos o sangue escorre e a gente engole esta raiva na cara suada e correrias desenfreadas lá fora disfarçadas entretendo-se consigo num escorrega do jardim da estrela bem perto da basílica para quantas preces ao divino
XXXVI
O solfejo inerte desta primavera escondida por cânticos de violoncelo na pedreira, o eco deslumbrante de vozes vazias neste ecoar de relentos fundos, de mãos que se apertam e a gente comemora o último toque bramindo de longe, sim, do outro lado da cidade o cais do Sodré sorridente bebem-se copos de esquecimento e marinheiros alemães desfilam o seu azul de fardas onde os navios distantes e prostitutas alongam-se pela rua vestidas de saias curtas e é primavera na cidade, sabes, os bares famintos enchem-se, ouvem-se os olés como uma gritaria de espanhóis vestidos de preto como ciganos dizem ser de sevilha e tudo o mais, o Esperança na enfermaria e Gertrudes numa aldeia qualquer do país enlutada pela sorte, as ruas iluminadas na cidade e a província festeja a matança do porco do soldado Silva e que alegria, nas trincheiras a gente, distantes e de camuflados distorcidos veados saltitam na sua correria quando as espingardas cantam, o verde seco na floresta e eu sentado no degrau improvisado da tenda.
Outro uísque e a cabeça engendra como nos recolhermos, é tarde nem sei mas o escuro invadiu-me e que fazer, nada, nada a fazer, aqui não há nada a não ser estar aqui simplesmente e ler as cartas fugidas da mão de algum general cansado de nos ouvir sem que falemos sequer, o furriel desce da árvore ali especada, os eucaliptos libertam o seu aroma como uma frança estacionada na minha imaginação para que um dia viaje sem ti para longe dos sentidos, apenas os mortos descansam nesta comissão de lágrimas.
Feridos lá dentro e cosidos o sangue escorre e a gente engole esta raiva na cara suada e correrias desenfreadas lá fora disfarçadas entretendo-se consigo num escorrega do jardim da estrela bem perto da basílica para quantas preces ao divino, corpo presente e a missa acontece ninguém por perto, o frio solene pelos cantos e o piano da igreja corteja melodias sofisticadas encantando os presentes, apenas alma lá, o pensamento sente-se como um abraço e tu longe. A escadaria repleta e ao fundo a bandeira que nos condecora, meia haste, ao passarem todos se benzem estarrecidos coitado, mais um em nome da pátria que nos abandona longe, contam-nos como números e que importam os nomes, soldados numerados e no bolso do lado do coração soldado trezentos e trinta e três partiu como se morre miserável em nome de nada.
O ambiente frio lá dentro desço as escadas e acendo um cigarro contando os que restam, foi no norte de angola que este sucumbiu, perdi a soma dos restantes e quantos vi partir numa caixa castanha decorada por cima com a bandeira da nossa pátria e hino nacional de herói nacional somos todos na verdade, defendendo nada e tudo se resume ao que somos, mandados para nunca mais voltar a ver o sol despontar na lezíria. Sentado nas escadas revisito a memória como espelhos colados na cabeça, o capitão passeia agarrado ao uísque irlandês encomendado só para si e água das rias tratadas na mata saciam-nos a sede, os lábios gretados e as mãos calejadas pelo gatilho da g3 velha e sem mira, a ferrugem no cano e a pontaria desalinhada mato saudade apenas, no jardim da estrela reformados jogam cartas e dominó revivem com histórias da sua vida longa sentados numa mesa de pedra sozinhos.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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