Ouço o rugido do mercedes deslocar-se para bem longe e nós com as vertebras partidas numa sanzala qualquer numa terra sem nome e que não me pertence, adio assim o meu silêncio.
LIV
Cada dia que aqui passo é uma experiência terrível, não acredito que se consiga sair daqui feliz, ninguém sai feliz desta ferida emparedada nos ossos cansados e sem alma, esta pedra engolida como silêncios vomitados contra as árvores que dançam ou badalam sob as torrentes descontraídas de ventos ambulantes nesta cidade de infinitos nadas e coloridos, apenas quando se fecham os olhos. O estalito da água dissolvendo o som do ventre adormecido no âmago perdido como canções que se ouvem no decorrer de fantasias como quem se encerra em jaulas com os metais cinzentos e lá dentro um escuro perdido nas matas oferecidas, em cada selo o meu nome como se a aventura coleccionasse dedos colados na face de monstros que me oferecem sentenças por inventar onde estar, ainda que nada surja, é tudo pura invenção dos anjos que recrio nesta tela de palavras sofridas e cansadas, é apenas o que sinto, cada dia que aqui passo é uma experiência terrível, aprenda talvez a inventar felicidades olhar para as coisas como se elas fossem a última vez que as tocasse, sentir o cheiro de jardins encantados e desfolhar flores lindas, coloca-las no jardim da minha casa e regá-las todos os dias com o meu prazer de as ter, sabes, as tardes são como pássaros coloridos decorando o sol das nossas tardes engolidas nesta praia sem cor, apenas o zunido breve das ondes nos encantam e sua correnteza a inebriar-nos sem fantasias tal a realidade do seu metal sobre as areias fantásticas de ruas cheias e sonhos encantados nas salas de jantar.
Vozes metálicas ecoam pelos cantos e nada mais a não ser estar aqui sentado, sinto como me observo para dentro engolindo os ruídos dispersos que me vadiam sem segredo as ânsias, o medo estarrecido nas janelas entreabertas enquanto lá fora o vento me observa absorto e nada me invade a não ser pensar como osgas que trepam paredes descontraídas como sombras entaladas nas avenidas da memória ainda camuflada naquelas matas de ninda, sim, martelo com os dentes estes ventos cansados de tédio disfarça em orcas num oceano bem distante como o da viagem até luanda. Sinto na pele a viagem de regresso, esta ideia não se cansa de me consumir todos os dias, o calendário ainda pendurado na caserna onde o meu quarto e o morto deitado
“ele está a descansar, não o acordem”
e os cobertores velhos sobre a cabeça para que durma sem sono
– deixem-me sozinho!
e nada, sinto-me invadido por masmorras incolores que me sobrevoam, que me consomem, restos espalhadas pelo quarto como se os ratos vadiassem à vontade pelas minhas memórias verdes nesta selva de ninguém e nós lá, combatemos sem a cor dos ossos, o camuflado enferrujado por estas águas dos rios adormecidos na nossa ausência, na presença dos asnos empobrecidos como soldados sem terra nesta terra que não é nossa, somos os turistas que a pátria idolatra. Sinto o meu corpo enjaula em si mesmo, ofuscado como pássaros sem céu e desaguar como cataratas nas avenidas destas cidades irritantes ao fundo da esquina. As luzes não bastam para me iluminarem o caminho nestas relvas descalças como veados que saltam jangadas nesta comissão de lágrimas, este fim do mundo sobre carris velhos que se deslocam sem pernas e nós ainda na sala com o general e o seu uísque escocês nos lábios. Ouço o rugido do mercedes deslocar-se para bem longe e nós com as vertebras partidas numa sanzala qualquer numa terra sem nome e que não me pertence, adio assim o meu silêncio.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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