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Sábado, Dezembro 21, 2024

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Ainda me lembro, Maria, tinha acabado de chegar de África e os zunidos frios se tornavam quentes, aquela praia fervia uma paz que tanto precisava, a tropa matou-me de dentro para fora e para dentro os restos de bombas estilhaçadas no cansaço de tantas memórias.

LXI

Ainda me lembro daqueles dias Maria, do teu Dodge azul-cinzento estacionado na primeira praia da manhã onde discutíamos o sexo dos anjos e a maré crescia em direcção aos pneus pretos e belos do Dodge que, ao ralenti, descansava e nós ainda nas nuvens a murmurar o que nunca soubemos, não havia covid, não havia sida, não malária porque não havia televisão, ainda bem sabes?, hoje, a mesma praia estacionada e o Dodge na enfermaria-oficina-cemitério de carros antigos olha para mim, penso comigo mesmo nem sei que pensar, nada lhe digo e apenas o observo velho, penso em mim velho, vejo televisão e descubro que com televisão há tudo, menos a forma bela como naquele tempo conversávamos como irmãos na zona mais a sul de Lisboa em que íamos sem pressa e voltávamos devagar a decorar de veludo as belezas transparentes, sim, as que existiam só para nós porque era o que queríamos. Que ninguém soubesse que a beleza existia. Que a vida existia. Que a felicidade existia. O Dodge novo brilhava o seu azul-cinzento que mais parecia céu que verdade.

Ainda me lembro, Maria, tinha acabado de chegar de África e os zunidos frios se tornavam quentes, aquela praia fervia uma paz que tanto precisava, a tropa matou-me de dentro para fora e para dentro os restos de bombas estilhaçadas no cansaço de tantas memórias. A floresta feita selva e a guerra mandava, havia códigos que fingiam saúde e eu numa enfermaria de pressas a curar esquecimentos, traumatismo!, dizia o soldado que carregava as macas todos os dias para dentro de mais uma vida de solidão, carregar-nos a cabeça com tantas lembranças, escuro e claro ou claro e escuro que importava, a g3 encostada à entrada e a tiracolo uma Valter velha, a nossa tropa só usava materiais velhos porque queriam velhos mesmo antes da adolescência e assim lá, agora nem lá nem cá ou o contrário sei lá, a praia daqui, entre vidros e retrovisores desmiolar de maços o verde da água ali, ela dança como sempre gostaste, não é?, que horas são?, chegamos e partiremos na mesma calma que nos trouxe até aqui e o horizonte ainda no olhar despertado, ouço as melodias e as danças que vejo e a praia que baila há tanto não via. Será que sabia que afinal havia vida? Talvez não saiba ainda hoje, porque a cabeça sem televisão naquele nos desligava de mentiras vendidas para o share na concorrência, e de que vidas se preocupam afinal, o dinheiro alegra, Maria?, nunca tive dinheiro, o que tinha eram feridos para curar e vê-los morrer. Não sei se terei morrido também, mas consigo ainda assim descansar o olhar e a vista nesta bela praia de manhã.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


 

 

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