os rapazes jogavam à bola a rua inteira aplaudia um craque novo e havia um craque novo não eu, debruçado e cansado sem cansaço nenhum sonhava, ouvira falar do Damas, um tal Vítor Damas sem o conhecer tornei-me um fã sem limites o Platão do Eusébio
IV
Reconheço os meus passos esquecidos, os riachos, as pedras, as calçadas, essas noites ainda ofuscadas por cada poro, por devorar ainda a essência abstracta dos calores frios irrompidos vagarosamente, reconheço a tua voz mergulhada na lama, nas nuvens, os passadiços e os postigos, reconheço a minha sentença avulsa alicerçada no esplendor de que vontades, reconheço o teu asno e a tua ânsia, a tua sede e fome, os balastros e poemas devorados em tertúlias de lágrimas e raiva e vontade e dizia como queria sem querer.
Quantas noites pisadas descalço, os calos nas unhas e o musco entre os dedos da fome onde os meus passos rasgavam um medo de dor e coisa nenhuma, reconheço a sala do vizinho morto à minha frente, o grito das portas entaladas e a garganta a arder por sedes inculcadas num querer perdido, reconheço ainda a tua mão sobre a minha, sem luvas, uma pele avulsa onde a neblina devorava o sibilo doce do aroma vindo de Paris. Abrias a porta, e ambos seguiam as suas caladas suculências emergidas numa alface a apodrecer e era sem ti, sim, sem ti. Aquelas noites eram o fantasma da febre por devorar, o regresso a casa onde só eu e coisa nenhuma, as janelas furtadas e pingos de gelo entre o medo e a saudade, aquela mesma onde um dia haveria de nascer novamente para o abismo, reconheço o chilrear dos melros se melros, o chiar velho das portas cansadas e casadas com o finito, um dia haveria de ser o último e nunca a dor atrelada numa ânsia ou coisa nenhuma, o grito ingénuo desta surdina de pianos desafinados, o violino estendido lá fora e chuva a badalarem os meus últimos suspiros de cadastrado desta vida.
Reconheço os meus passos, o dos outros, invento-os para que me sacies a ânsia, torno-me um galgo nesta rua de ruídos e prédios e coisa nenhuma a consolar-me, vejo o espelho nas vitrines e a barba seca, esbugalho os olhos e pressinto coisas de que foram entretanto trazidas para me acompanharem nos passos, nesta devoção de servo das horas, panfletário e otário os passos seguem a minha caminhada deixando marcas na calçada, na alma de quem foge de si mesmo recordando apenas que um dia haveria ter sido esquecido. Havia um lado escuro por trás da porta, sentia os passos que me pareciam furibundos e vi logo a seguir, era um rapaz descalço, bolsos vazios e incomodado era o seu ar, a porta, essa, era a da minha antiga casa onde há muito não morava já.
A minha mãe na cozinha tecia adoráveis petiscos o meu pai na sala. Tudo parecia um requinte e eu, pensava, ou talvez mais do que isso imaginava uma vida posterior noutro canto escondido desta vida adorava a minha mãe, nunca esqueci como era importante sentir o glaciar sorriso do meu pai eu na janela ouvia o vento do norte numa nortada linda, ouvia o zunido pelas frinchas em cadeia como que se alguma vez tivesse sido combinada mas não, queria imaginar um flagelo de cor azul a sobrevoar uma canção não sei de quem mas o vento já me encantava e chover nada, apenas o vento comigo e sonhava o rapaz descalço vadiando dentro de si mesmo em direcção à minha casa que já nem existia nem eu nem ninguém e talvez tudo fosse fruto absoluto de um desejo de cores celestiais a sobrevoarem-me enquanto descansava à janela daquela casa vendida há anos e nem sequer a quem sei. Nem tão pouco se existiu.
Ao fundo a rua terminava, os contratados seguiam em fila e um fonador seguia-os de chibata em punho eu na janela a ver tudo com uma realidade tão absoluta como todas as certezas não concretas numa mente demente eu estava cansado e nem sequer sei já se conseguia pensar ou discernir o destino do vento.
Os contornos da janela eram indefinidos, abria para dentro de par em par, o cheiro e fumos a casa era antiga, a minha mãe lá e eu sem pensar escutava os fritos daquela frigideira talvez, lia livros sozinho e cowboys na retina o meu pai devorava, o alcatrão brasava o meu olhar difuso e eu confuso, um dia sonhara ser louco e nem para isso havia um destino, pegava em mangas esticadas para o meu lado e comia sentia o fruto deslizar era um silêncio tão repentino e tudo parecia mudar. Desmesuradamente o rapaz lá fora.
Rotina talvez, era um canto soberbo onde dizimava comigo silêncios esquecidos, a vida era curta, desinteressante, quase todos os dias a mesma rotina, sim, rotina, os rapazes jogavam à bola a rua inteira aplaudia um craque novo e havia um craque novo não eu, debruçado e cansado sem cansaço nenhum sonhava, ouvira falar do Damas, um tal Vítor Damas sem o conhecer tornei-me um fã sem limites o Platão do Eusébio o quintal bramia alegria eu à janela sem coisa parecida a minha irmã bebe a minha madrasta de calças amarelas unhava eu tinha medo sentado de vez em quando era a janela o meu desígnio de evasão.
O dia abria cerrado, a luz demorava a desocupar as trevas, os ruídos fluidos devagar caminhavam como albatrozes pelas escadarias de edifícios abandonados ou esquecidos, um rapaz com ar de frio, uma ampulheta vazia jazia sobre o empedrado da calçada, ventos vindos de onde, escuro para onde ia, o dia abria cerrado.
Este afunilamento intelectual alienígena que tenta evaporar-me com ventos suculentos e sugantes, uma ira ambulante que paira céus térreos amputando-me a estrada, envenenando o meu percurso, sugando o meu sangue, não consigo entender, mas compreendo ser de todo impossível, ninguém consegue jamais na vida perceber a ira de quem quer que seja contra outros.
Essa tentação purgante planeada pela inconsciência purgante de raivas obscuras e talvez transparentes, essas quezílias sub-reptícias envenenadas por diásporas e vazios de fundamento embreados por nexos incolores a fazerem-me, ou tentarem, perder o sono, a orientação, este desígnio que Deus me deu e tento seguir sem atropelos nem invejas, sem raivas nem questões, apenas seguir singelo como Jesus seguiu após tantas perseguições e acusações fundadas e fundamentadas pelos vazios de quem apenas quer ver-nos a chorar, enchendo assim o seu orgulho e sem quimeras, florescer o seu verão secando a vida de quem queira mexer-se.
Este sepulcro contra mim não me abate. Este caloroso ataque movido por iras invisíveis não me perturba. A razão jamais pertencerá aos homens, filões de fúrias e calúnias, invejas e ódios, raivas inexplicáveis e verões alucinantes a quebrar a pedância dos sábios do olimpo.
Carta aberta pelas minhas sensações, pelo meu direito à vida, pela minha vontade de crescer, pelo meu respeito por todos como sempre fui considerado, pelos princípios que sempre defendi, ao lado da humanidade, respirar a possibilidade que a vida permita, nunca o contrário e disso tenho a certeza.
A queda e a morte de rios a florescerem-me dentro de si mesmos, era o cataclismo a divertir-se em longos sorrisos nestes corredores onde só morrem fracos. A noite será sempre sublime e cada silêncio o pronúncio, a ida das esferas caladas do nosso rosto que nunca fala, mas exprime-se sem cores onde águas devastam qualquer sorriso esquecido nestes corredores onde só se morre uma vez e nasce-se como um subúrbio de vontades sem mãe!
Um dia qualquer me dera risos nesta esplanada inventada no meu quintal, um dia outros sorrisos me inventam para me encantarem, não sei se é do que preciso, resmungo, resmungo, e ao fim de tudo isto nada, é mais uma relíquia desinquietante para o momento que pretendo e coisa nenhuma, precinto os desígnios e invento-os por isso mesmo, serem somente desígnios a resvalarem os pequenos charcos criados pela chuva e correm, discorrem quintal abaixo sem deixar rasto, as marcas secam a uma velocidade estupidificada como eu me sinto, não um esse atrás citado mas algo que não entendo me faz ser o que me faz não sentir-me, não preciso, garanto, que me levem a esse plano onde nunca ninguém singrou, nem sequer preciso que me levem a lado nenhum. Talvez escutando canções perdidas ou de perdidos cancioneiros a vida me comece a mostrar algum sentido, não faz mal não haver sentido nenhum porque me basta o silêncio obtuso dos meus próprios sentidos, os que moram no azedo adormecido do meu corpo.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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