A minha vida não é isto. É uma outra coisa qualquer que nem a folha de papel assume. Que digam serem riscos diluídos num sonho ainda que nem sono, as vozes gritantes por todo o lado e as paredes horríveis a fecharem-se de encontro a mim, é como tantas vezes me sinto. Um esqueleto não tem alma.
VI
Ao fundo do céu, não sei se na verdade era mas parecia, até porque sentia escorrer-me pelo corpo, o meu corpo cansado, extasiado e perdido nestes montes e matas se a caserna ou o consultório de campanha, eu lá fora sentei-me sobre umas pedras escorreitas e observava nem tão perdido sei, do céu, um cacimbo que é de áfrica cair-me subtil sobre a face molhada e mais molhada ainda a chuva bramia em mim os meus desesperos e inconstâncias, ela comigo e que soldados espalhados, perdido no recôndito momento que melhor que senti-la, a cabeça encharcava-se e o miolo perdido, sonhava
– amo-te Deolinda!
com lisboa ainda fria nesta altura, a minha menina, e tu?, os meus pais velhos, o fim no fim do mundo que nem sequer no mapa encontram, encostado a um tronco e tiros sei lá
– amo-te Deolinda!
um dia irei a essa lisboa já devastada da minha cabeça amor, aqui o mundo é enfadonho, não quebramos a rotina, todos os dias coso e esfolo a cabeça, soldados estripados amigos enterrados neste mato um dia de alguém, não era a minha ideia deixar-te sozinha nessa casa só nossa, a casa do nosso amor e que agora só tu nela, pensares se volto em que navio vivo ou morto, a minha filha crescida,
– quem é ele, mãe?
sorri amor, nem cartas nem recados apenas a cabeça em viagem esta guerra nunca foi minha, mas vim aqui parar, mandaram esses cabeçudos que governam e a gente se não obedece…
– o Alfredo?
(Sabes do Franco?)
não sei de nada, isto é tudo fim do mundo, isto é tudo longe só árvores e folhas e terra mais fumarada
– livre-me deste vento doutor!
nem sei se sei, aqui, se longe, na enfermaria cardápios alojados, montes esticados e eu nem lá, cansado de ver morrer, de não conseguir salvar, ninguém salva mortos Deolinda, acredita, o estetoscópio esquecido o paludismo nos ossos e na carne, a febre fervilha e eles
– ai doutor!
ainda sem mim por perto estou aqui onde talvez me possa sentir contigo, os tiros lá longe a tua voz a mastigar-me os tímpanos e os miolos
– preciso de ti Antunes!
– e eu de ti Deolinda.
e a nossa filha, onde a tens?, centenas de soldados todos os dias, temos tido emboscadas e safamo-nos, o jeep vagueia quase parece ter olhos e conhece cada trincheira, cada mina, a que meses aqui nem datas marcadas não sei quando o fim desta missão
(sôbolos rios)
nem cartas. Chove copiosamente nesta mata onde o quartel nos protege, o cacimbo é lindo e terrível nunca vi, penso que na europa nunca havia visto, relâmpagos de torpor, faíscas em lume sobre as casernas nem pára-raios somos soldados nesta guerra não nossa,
– o Salazar?, ainda aí?
Deus queira tombe, tropece nas suas ganâncias, deixe-nos regressar a casa, estes soldados cansados e obrigados, aguçados, evitam como morrer e tantos a irem em caixões com a bandeira que nos mata
(em nome da pátria, orgulho e raça lusitana!)
na frente de combate éramos centenas e mais,
– nunca vi um turra capitão, existem mesmo?
a luta era mais ou menos longe, eles e as catanas creio, nós de balas e morteiros a morrermos longe,
– onde fica agora trás-os-montes soldado?
norte de Angola. Onde só palha e montes, os rios luzidios ainda cantavam descendo impávidos o declive da sua vida, onde sede, onde medo, e os tiros nada, ainda catanadas diziam uns mais antigos,
– ai capitão!
– estás feito num maricas!
vamos em frente e sempre em frente, havemos de vencer esta guerra que guerra, coisa nenhuma para quem nunca quis ser soldado à força,
– quando chegares à metrópole diz isso mesmo ao general, bolas!
eu sem culpa também, medo também, tudo me parecia mentira, juro, ainda avançava pelas matas e montanhas, vi pontes quebradas e jazigos cheios de sangue, o jeep soluçava o oxigénio cansado, o diesel farto e eu nem lá,
– um dia de novo num cais qualquer de lisboa!
vim para esta missão, não nasci para isto acreditem, nasci para salvar vidas, mas não salvar guerras,
– atenção, ataque!
eu ainda no consultório de campanha ouvi de longe, pernas amputadas, braços amputados, porra!, estudei medicina em Coimbra, mas não para vir para áfrica matar desconhecidos, aqui tudo é desconhecido, não conheço nada, falavam-me de luanda e não conheço luanda, a ilha, que ilha?, a minha ilha é esta solidão, esta comissão de lágrimas, estes corredores fragmentados de ossos e miolos espalhados, nem tudo salvo, nem a todos consigo sarar a dor, que comprimidos?,
– aqui só resoquina doutor, o cabo socorrista de bata ensanguentada.
cabeças espetadas em troncos,
– esta é a nossa pátria!
dizia salazar, na cadeira sentado onde jorrava raiva e de que medos, os soldados sim, eles nas matas contra tudo e todos, morriam queimados, degolados, catanadas fatiavam os seus corpos e pedaços, já nem Silva, evacuado para Portugal gravemente ferido em combate,
– onde a insurreição?
– no alto de são joão!
e cabeças de negros espetadas em troncos eram trunfos de guerra,
– os estrangeiros são quem os combate capitão!
ainda vais preso soldado, ensinaram-te a obedecer, sei disso, aprendi no curso de oficiais milicianos. Soldado só aprende a obedecer, ouve bem meu rapaz
(o oficial de dia aborrecido)
– a sua missão é esta, obedecer e fazer cumprir, sigamos, treino rígido hoje e é toda a noite!
a morte espera-nos por onde menos esperamos, as trincheiras cheias onde repletas nem gritos e só tiros, o consultório repleto onde nem gritos só tiros, a rua era inventada a cada momento, enquanto cosia feridas profundas a cabeça viajava,
– quero sair daqui!
e tantos como eu ali, cigarros amarrotados calcavam a solidão entre tantos e cada um com a sua lembrança e a arma nas mãos, ali tudo se fundia, tudo descia ao imaginário mais simples, abraços no regresso das campanhas, de vez em quando o vinho alumbrava as noites infinitas e nós na caserna de tantos ausentes.
A minha vida não é isto. É uma outra coisa qualquer que nem a folha de papel assume. Que digam serem riscos diluídos num sonho ainda que nem sono, as vozes gritantes por todo o lado e as paredes horríveis a fecharem-se de encontro a mim, é como tantas vezes me sinto. Um esqueleto não tem alma.
Sento-me tão vagarosamente nesta cadeira de algum lugar e tento vigiar a minha impaciência, uns goles no café quente e continuo mesmo assim sem mim por perto. Onde estariam os meus olhos naquele instante?, uma pergunta mais para que se me inquietem os dissabores.
Páginas do livro devoradas, a minha cabeça estiola e num gesto estou dentro do livro, numa página qualquer, pois, já nem me importa qual seja, o certo é que a minha vida não é isto. Quantas vezes na vida viajamos por entre tantas coisas que nos fazem querer ser aquilo ou aqueloutro, viajamos sempre e nem sempre a mesma disposição, nem sempre aquele café ainda que saboroso, tantas as viagens percorridas são o passado acumulado ainda que as pernas fortes resistam a tanto peso, e eu sentado naquela saudade estampada num belo quadro quadrado.
A minha vida não é isto. Como que se eu mesmo me estivesse a ouvir a mim num poço. A folha de papel limpa ainda, não há nada que consiga escrever, os dedos parecem ter congelado, mas é apenas uma sensação, acredito, o vento é brando e os cantos da esplanada repletos onde conversam imensos, fecho e reabro o livro tantas vezes, parece que às vezes a gente se esquece dos olhos, imaginamos e pronto, julgamos estar assim a ver melhor mas que importa, se a sensação é no momento o que mais interessa?
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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