A estrada de benfica sem movimento e no jardim zoológico os animais agitados e quatro e tal manhã ainda, horas que pesam, param, uma chávena de café numa mão um cigarro na outra viajo de dentro e para fora numa velocidade fugaz e tudo talvez tão rápido apenas o tempo parado na minha cabeça.
VII
Quatro e tal, dizem que cedo penso que não, noite ainda, a bruma navegava sossegada pelo quente disparado pelo tempo e eu, nas quatro da madrugada rebolava e rolava e cansado a cama nómada, a mão nómada, tudo diferente ou indiferente e nada
– fala tu primeiro filho!
no vazio excrementado uma voz não minha da minha boca sei lá
– fala tu filho!
virei o rosto e nada, um escuro vadio de noites inebriantes a minha mulher rechonchava a tua voz nada, em que lado a Maria amada deste tão incessante silêncio,
pensava
quatro e tal ainda e nada, desci as escadas e da janela a morte vadiava o meu distraído interior eu nesta janela de ninguém onde só eu e pensava
– fala tu filho!
onde que insónia e tu nem lá comigo, onde estavas sozinha num amor amargurado pela voz um Venâncio de desamores e outros em outras janelas e as suas mães
– fala filho!
nem dormirem sinto porque da minha janela ouvi o esqueleto partido como se um cortinado despendurado a janela sem reflexos e a minha mãe
– deita-te filho!
sozinho na sala um frio onde que calor nem tu, amargurado sei lá ninguém comigo, escrevi a cama e dormi, nem sei se adormeci parti.
– onde que cama amor?
Um ar de Lisboa ao fundo onde que mar e navios desviados pela forte maré, seguem sem rumo, onde que rumo? O mar saltita ondas frequentes, um vento disparado que metralhadora sei lá, as mãos num gelo vazio onde memórias se cansam e saturam, a cabeça fervilha e eu aqui, onde que lisboa ainda?
– fala comigo filho!
a minha filha deitada, um sono ainda nas profundezas de uma noite inocente ela, a noite inocente, a minha cabeça ausente fervilha,
– onde os tiros?
nem sei agora se longe ou aqui, na sala ou na janela busco respostas e onde respostas, nem a mim me ouço, estilhaços ainda naquela enfermaria de campanha e onde o Silva? A estrada de benfica sem movimento e no jardim zoológico os animais agitados e quatro e tal manhã ainda, horas que pesam, param, uma chávena de café numa mão um cigarro na outra viajo de dentro e para fora numa velocidade fugaz e tudo talvez tão rápido apenas o tempo parado na minha cabeça. A minha mãe falecida há anos eu na sala,
– deita-te filho!
apetecia-me imenso falar e ninguém para me escutar, as memórias divagam e viajam como naves esquecidas onde que céu lá tão longe. As panelas e os estribilhos ofuscam-me, fecho a cozinha o café quente, a janela e o cigarro e os ácaros sei lá onde a cozinha fechada, a minha mãe finita onde o meu pai,
– foste para a guerra meu filho, serás um herói!
os meus ouvidos parecem surdos ouço na alma e os esqueletos resvalam ossos nos ossos, uma dor ainda e que dor, a guerra foi verdade, é verdade, onde os meus amigos os soldados cansados, onde o motorista do jeep e o jeep onde, onde a minha cabeça a minha cabeça, estou cansado e ainda aqui sei lá onde, benfica já me cansa, Portugal já me cansa, a minha mãe partiu e nunca uma vela ou flores minhas na sua campa, a minha mulher sozinha e eu nem lá,
– Santa Paola!
fruto do nosso amor, sabes?, há que anos e dela só hoje onde a janela se abre e me abre horizontes se sei ainda pensar, se consigo escutar, raciocinar e que guerra onde? Norte de Angola os obuses e os soldados atirados ao ar, uma mina e que jeep, não sei se ainda estou vivo ou se morri, estou cansado e sem alma, farto da minha viagem nesta casa onde só insónias.
– deita-te filho!
Ouvia tudo e nada, tudo me parecia atroz entrando sei lá como nos ouvidos a cabeça estiolava, pensava na minha alma e onde ela, esquecida quem sabe numa mata qualquer o soldado estiolado deitado e eu sem agulhas operava, cosia sem fantasias bramia apenas,
– ai doutor!
a minha mãe morta o meu pai velho e sozinho, rabugento dizem, a noite aqui é repetida e nem a sinto estou cansado, nem sei como estou farto, o meu pai médico e reformado,
– aguenta-te filho!
Santa Paola vai entrar para a universidade eu longe e nem dela mais notícias, as coisas demoram a chegar a nós e nós viajamos noite e dia, escrevemos e rescrevemos recados,
– amo-te Deolinda!
se viúvo um dia, tu viúva um dia, a vida marca os nossos passos, regista os nossos actos, mato sem ver dou tiros para o ar é medo sinto isso a cada segundo nesta terra quente e só tiros, repetidos os sons que cheiram a fim todos os dias, cada manhã é uma vitória e a alma chora, passo pelas ruas de benfica recordo ainda em criança era o jardim zoológico as minhas tardes de sábado, a minha mãe
– não metas as mãos nas grades!
ralhava e que me importava com isso, o meu pai num consultório ou hospital,
– hoje estou de banco Deolinda!
pouco me recordo do meu pai, raras as vezes nos víamos, a minha mãe cozinhava um cozido à portuguesa e eu deliciava-me. Era bom sermos muitos irmãos, tinha sempre alguém para brincar, subia a estrada da luz e de benfica, jogava à bola nas ruas onde carros pouco havia, fui o único a receber esta infeliz missão de ter que combater em áfrica.
Se ao menos um sono e tudo isto me desaparecesse da cabeça, um sonho e tudo isto era mentira, acordaria tranquilo tomava o pequeno almoço e seguia para a escola, tudo isto é penoso sendo verdade, quatro e tal e ainda na cabeça
– onde estou?
vazia e cheia ao mesmo tempo, uma perfeita combinação de tristezas e amarguras, os tiros das metralhadoras estou farto,
– fica calmo filho.
por dentro uma voz, a minha mãe descia as escadas, cansada, velha, bonita, passa a mão pela minha cabeça, suave, as rugas recortando o rosto o pescoço enrolado por um cachecol, está frio, olha para mim num olhar crescente, talvez uma chávena para mim, um chá quente,
– bebe filho, isto vai tranquilizar-te!
e de repente parecemos transparentes, não somos vistos nem vemos, um frio cobre-nos o pensamento e tudo se dilui num abrir e fechar de olhos, a vida esvai-se, o medo cresce, tudo é penoso, tanta dor e cansaço e durmo, mais que isso deito-me e o fumo passa devagar sobre as telhas da casa, os pombos esvoaçados sonho e não durmo, nem pombos é noite ainda, dormem também no tejadilho do carro, repletem o quintal e estrume, estrume nenhum, somos apenas algo que por aqui percorre uns tempos e pronto, somos rastilhos de uma existência fugaz e pronto, somos penas da vida e ela tem pena de nós,
– coitado do Esperança!
sempre foi esperança até que um dia terminou como uma bala nos miolos, o seu pai esperança na aldeia e na matança do porco, a sua sem filho morto na guerra do ultramar,
– em áfrica matam doutor!
defender a pátria, os jornais divulgam,
(Com honra e glória, o ultramar é nosso!)
– não nasci para isto Deolinda!
não quero morrer com uma bala espetada no focinho e devolverem-me à pátria, um caixão coberto pela bandeira dos heróis abatidos em combate, isto não é nosso, nada disto nos pertence, vim assim, numa comissão de lágrimas definhar aos poucos e acabar sem ideias, vou desistir de pensar e não sei se nascerei novamente, tanto gostava mas não acredito ser possível, a minha mãe coitada, nunca viu o filho com a farda do exército dos heróis, dos regressados em navios enormes atracar em alcântara, os amores de muitos lá, outros apenas o vazio, outros nem isso, apenas os bares e o cais do Sodré repleto de almas frustradas e tristes sem saberem o que é de facto a tristeza, a tristeza é uma coisa feia, a gente nem sequer tem consciência disso quando bebemos e esborrachamos os miolos para esquecer e nada esquecemos.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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