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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Sobre o livro “Entre dois rios com margens”

Obra “Entre dois rios com margens”, de Delmar Maia Gonçalves (CEMD Edições, 2013)

Samuel F. Pimenta

O meu primeiro contacto com a poesia de Delmar Maia Gonçalves remonta a 2012. Logo lhe percebi a intensidade política, com poemas marcadamente denunciadores da iniquidade e da tirania, como os que estão reunidos na obra “Entre dois rios com margens” (CEMD Edições, 2013).

A poesia de Delmar Maia Gonçalves é vertical, no sentido de se elevar dos crimes mundanos para os tornar visíveis, e simultaneamente horizontal, porque sempre busca o ideal humanitário da igualdade e da fraternidade, sempre busca a utopia. No livro “Entre dois rios com margens”, em “Poema contra”, escreve:

 

“Quero
que meu Poema
seja um voto de protesto
de todos os homens
acorrentados
pelo cadeado do silêncio”.

Acorrentados por quem?, podemos questionar. Pela corrupção, pela perseguição política, pela pobreza e pela guerra impostas por:

 

“Corvos
de mau agoiro
com sorrisos de Hienas
e um voraz apetite de Abutres”

Como nos diz no poema “Em Moçambique”.

Há que referir que Delmar Maia Gonçalves é um poeta moçambicano na diáspora e que, mesmo à distância, nunca se alheou da realidade do seu país, mantendo-se atento, questionador e não temendo expor a injustiça e as fragilidades da sociedade. A sua voz política e humanitária irrompe em poemas como “Em Moçambique”, “Lá vai o General”, “Funeral da Verdade” ou “Homoíne”, este último em evocação ao massacre que vitimou centenas de pessoas durante a guerra civil, onde se lê:

 

“Em Homoíne
Destilam-se lágrimas
No vapor
Do tempo
Das balas”.

Também no poema “Paisagem”, assume uma voz de protesto, recusando um mundo regido pela “lei dos sem lei”.

Mas a exposição da injustiça, com o seu carácter vertical, não se impõe ao ideal humanitário e de horizontalidade entre a comunidade que o poeta busca. No poema “África”, além da denúncia da desigualdade, o Eu faz uma pergunta, reveladora da vontade de iniciar um caminho que suplante a desunião e a miséria, um caminho idealizado. Lê-se:

 

“Já que:
o velho Imbondeiro
adormeceu ressequido
Em quantas partes
dividiremos
o Pão da nossa Fome?”.

O imbondeiro, aqui, surge como elemento simbólico identitário de um povo, dos seus ancestrais, à volta do qual se reúne a comunidade. Mas este imbondeiro está seco, adormecido. É necessário nutri-lo com água, despertá-lo, para o ressignificar. Voltamos a encontrá-lo no poema “Repousam”, como memória de “velhos Imbondeiros”, enquanto o Eu se encontra noutra geografia, repousando sob uma oliveira, árvore que assume o mesmo lugar e a mesma simbologia do imbondeiro. Apesar da distância do seu país, o poeta continua a ser portador da linhagem e da sabedoria dos ancestrais, guardiões da memória e da poesia, tão cara à tradição oral. E pelo poder dessa poesia, dessa continuidade da palavra antiga regenerada, será possível trazer paz ao mundo. Pois apenas pela paz haverá esperança no futuro, como nos lembra através do poema “Vida”.

 

“VIDA

Ao meu país
As aves regressaram
E com elas
A alegria, a paz, a vida
E os poetas
Nos versos que cantam
São rouxinóis inquietos
De vida e esperança.”

Delmar Maia Gonçalves é uma dessas aves inquietas de vida e esperança. Que tenha sempre ânimo para cantar!


por Samuel F. Pimenta, Poeta e Escritor. Nascido em Alcanhões, Santarém, em 1990. Licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. São vários os prémios que lhe têm sido atribuídos, como o Prémio Jovens Criadores (2012), o Prémio Literário Glória de Sant’Anna (2016) e o Prémio Literário Cidade de Almada (2019). Além da literatura, dedica-se ao estudo da espiritualidade e à promoção dos direitos LGBTI+, dos direitos humanos e dos direitos da Terra


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