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Sábado, Julho 27, 2024

Social-democracia: para onde vais?

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Mendo Henriques
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Afirma um relatório da Oxfam que a riqueza acumulada em 2015 por 1% da população mundial superou a dos 99% restantes. A desigualdade crescente não é apenas um mal social; é um dano que aumenta a espiral recessiva, é um escândalo humanitário.

Para onde vai a sociedade social-democrata em que acreditamos? Depois de ter vencido o fundamentalismo socialista em 1989, vamos ser trucidados pelas políticas neoliberais?

De onde vem a ideia, sabe-se bem. Nasceu em quem acreditou na existência de um governo justo, a ser atingido pelo caminho da democracia. Como toda a ideia carece de um nome, ele nasceu da expressão de Aléxis de Tocqueville, que no livro A Democracia na América (1835) falou da “democracia social” americana. Era mais que o restrito ideal democrático dos gregos antigos. Era uma experiência que brotava da participação dos cidadãos a partir das bases.

Para além de Tocqueville, nomes como Saint-Simon, Robert Owen, e Proudhon contribuíram para a construção do que hoje conhecemos como a social-democracia. Marx e Engels, com o Manifesto Comunista formaram o mundo das ideias socialistas. Proudhon repudiava o carácter científico da proposta de Marx e Engels, mas pregava uma ditadura revolucionária. O sindicalismo deu contributos fundamentais, conquistando a redução da jornada de trabalho, a melhoria de salários, a proibição do trabalho infantil, a limitação do trabalho feminino e o direito de greve.

Por entre lutas e conflitos, a social-democracia foi conquistando espaço, como a vontade de democratizar a sociedade a partir da igualdade de oportunidades. Na Europa dos anos 30, era perseguida por nazis e fascistas: Estaline e a III Internacional Comunista declararam-na como inimigo nº1.

Se o ideário social-democrata nasceu no intenso fervilhar de ideias sociais após a Revolução Industrial, desde então o mundo mudou muito. Passaram duas guerras mundiais e revoluções tecnológicas que nos ensinaram que o futuro não se programa, muito menos em livros e manifestos. E aprendemos que as sucessivas experiências da humanidade nascem do anseio de liberdade pelo qual muitos continuam a dar as suas vidas.

A defesa intransigente da liberdade que permanece na raiz do ideário social-democrata significa, na prática, um sistema político com exercício livre e soberano do voto, na liberdade de expressão e associação em movimentos e em partidos de cidadãos que garantam direitos políticos amplos para todos. Em suma, um conceito baseado na cidadania e oposto a regimes autoritários e totalitários.

A queda do muro de Berlim, em 1989, marcou o fim dos que imaginavam ser positivo o controlo estatal da economia. Aprendeu-se que o sistema económico preferível assenta no mercado como a livre circulação dos factores de produção e que a concertação social é indispensável para harmonizar mercado e regulação estatal.

O Estado Social foi criado na Europa na segunda metade do século XX. Em Inglaterra. Na Escandinávia. Em França. Em Portugal, com os governos PSD e PS que se revezaram até 2015. O eixo principal são os sistemas de segurança social, educação e saúde a garantir benefícios para todos e atenuando as dificuldades dos mais carentes.

Mas voltou à tona a dúvida que sempre perseguiu todos os que lutaram pela justiça social. Com a desregulação dos sistemas financeiros, imposta pelo consenso de Washington e agravada com a crise de 2008, os mercados priorizam quem já tem, em detrimento dos menos favorecidos. É a economia ao serviço dos 1%.

As ideias neoliberais afinadas por autores como Hayek e von Mises e Friedmann chegaram a Portugal com o habitual atraso: do velho Milton Friedmann passava o programa Free to choose na RTP, canal único, nos anos 80; desde então, a proliferação dos media reprodutores de conteúdos neoliberais espalhou essa mancha.

Portugal fez a sua desmarxização nos anos 80: abandonou uma má ideologia sem encontrar uma esperança à altura da utopia perdida. Passou a falar-se em pragmatismo, anunciou-se o fim das ideologias com duas décadas de atraso; os intelectuais tornaram-se agenciadores de políticas, e os políticos em agenciadores de negócios. De estadistas, nem cheiro. E o espectro do pensamento único passou a pairar sobre Portugal.

Veio a pretensão de que o corte de gastos sociais reduziria o déficit público. E de que as políticas de austeridade combateriam o desemprego, pois o Estado Social encarece a mão-de-obra.

Ora desmontar os sistemas de bem-estar social como mecanismo de redução de despesas estatais é como deitar fora a criança com a água suja do banho. E pretender criar emprego sem regulamentar um sistema financeiro que perverte os mercados é asneira. O sofrimento de milhões de pessoas em todo o Ocidente está à vista.

E isto justamente no momento em que mais precisamos delas.

Este é o desafio central para a nova agenda social-democrata: tal como combateu o socialismo que via no Estado forte a garantia de políticas sociais, terá que se opor ao neo-liberalismo que nos impede de ver que os mercados deixaram de ser livres.

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