Há poucos anos, a maioria dos membros do Partido Democrata, nos Estados Unidos, tinha medo de se dizer “liberal” – o termo para esquerdista no vocabulário político norte-americano. Agora, parte da maior legenda de oposição ao presidente Donald Trump e a seu Partido Republicano abraça o socialismo com naturalidade. É o que aponta artigo assinado por Edward Luce no tradicional diário britânco Financial Times, com o título “EUA vivem um inesperado alvorecer do socialismo”.
Na opinião do jornal, a estratégia de demarcação tem um teste à vista: as eleições presidenciais do ano que vem. “Uma derrota para Trump em 2020 seria um túmulo precoce para o amanhecer socialista dos EUA. Até lá, contudo, os eleitores americanos deverão continuar tendo vislumbres de algo raro – um debate ideológico genuíno. Seria precipitado prever qualquer desfecho.”
O “socialismo à americana” é sui generis. Não propõe a estatização dos meios de produção nem se baseia na liderança de um partido comunista de vanguarda. Não é, portanto, um herdeiro direto da teoria marxista-leninista. Aliás, mesmo em termos econômicos, seu ponto mais ousado é a regulamentação do setor bancário.
Exemplo da ascensão desse socialismo no Estados Unidos é o movimento político DSA (as iniciais, em inglês, de Socialistas Democráticos da América), que projetou a figura da jovem deputada do Partido Democrata Alexandria Ocasio-Cortez, de apenas 29 anos. Trata-se da mais jovem mulher a ocupar uma cadeira no Congresso norte-americano, após uma espetacular vitória sobre o republicano Anthony Papas.
Ocasio-Cortez fez uma campanha com forte mobilização de base, sem aceitar dinheiro de grandes empresas. Cerca de 70% do total das doações foram individuais e com valores inferiores a US$ 200,00[3, equivalente a menos de ¼ do concorrente democrata”.
Há dois anos, ela era garçonete de bar – posto que ocupava enquanto estudava Relações Econômicas e Internacionais na Universidade de Boston. Correia lembra que Ocasio-Cortez “trabalhou voluntariamente na campanha do senador Bernie Sanders (…), que também se reivindica como um socialista democrático, embora nunca tenha se apresentado oficialmente pela DAS”.
A principal bandeira de lutas de Ocasio-Cortez é a taxação da renda dos ultrarricos – algo como 70% da renda das pessoas que recebem mais de US$ 10 milhões por ano (ou cerca de US$ 833 mil mensais) –, para financiar novas políticas ambientais. Seu “New Deal Verde” inclui, segundo uma estimativa, obras públicas e novos benefícios do governo ao cisto de US$ 6,6 trilhões por ano – quase 70% a mais do que o orçamento federal dos EUA, que é de US$ 4 trilhões. Nunca se viu nada parecido no país.
Alguns dizem que o projeto é autofinanciável, porque estimularia a economia. Outros apostam no lançamento de títulos de dívida, livre de custos. De acordo com uma teoria monetária moderna, os governos podem simplesmente emitir dinheiro novo sem causar inflação. Quase todos os nomes democratas com ambições presidenciais no Senado – incluindo Kamala Harris, Cory Booker, Elizabeth Warren e Kirsten Gillibrand – apoiam a proposta de Ocasio-Cortez. Ela se tornou uma espécie de teste definitivo das credenciais de um candidato. Há três motivos para levar tudo isso muito a sério.
O primeiro é que o New Deal Verde já entrou no imaginário popular. Da mesma forma que Ocasio-Cortez é chamada pelas iniciais AOC, seu projeto de lei é conhecido pela sigla em inglês, GND. Poucos políticos ou projetos ganham essa distinção. Basta pensar em John F. Kennedy (JFK). O fato de que em poucos meses essa ex-garçonete de bar do Bronx tenha saído do zero para ser identificada pela onipresente sigla AOC escancara o apetite por mudanças nos EUA. Ela é hoje a figura mais influente na política dos EUA, depois de Trump.
O segundo motivo é que a proposta de Ocasio-Cortez ainda é somente uma declaração arrojada de intenções. Assim como se dizia que os eleitores de Trump o viam seriamente, mas não o interpretavam literalmente, o mesmo pode ser aplicado ao New Deal Verde. Os que ficam fazendo contas podem estar deixando de perceber o principal. O objetivo do projeto é sacudir o debate nos EUA. Nesse sentido, já foi bem-sucedido. O termo “verde” não é mais uma preferência de estilo de vida. É uma parte do cálculo econômico. Na mente popular, agora há um elo entre aquecimento global e investimento público.
Terceiro, os norte-americanos parecem ansiar por opções de escolha. Houve tempos em que as eleições americanas podiam ser caricaturizadas como Coca-Cola contra Pepsi – o gradualismo político e social dos democratas contra o livre mercado dos republicanos. Por ora, essa timidez acabou. O exemplo de Trump rendeu imitações. A escolha agora parecer ser mais entre uma dose de vodca e um suco superverde. Quando a política é moldada de forma tão incisiva, há poucos lugares nos quais se esconder.
Trump vê esse socialismo verde como a sua chance de salvação eleitoral. Os democratas querem tirar de você seus carros, suas vacas, diz ele. Além disso, vão te obrigar a viajar de trem, o que nos EUA é o equivalente a ser enviado para um gulag – os antigos campos soviéticos de trabalhos forçados.
Se o instinto dele estiver certo, Ocasio-Cortez poderia se tornar a arma secreta de Trump. Obrigar os democratas a votar no projeto de lei dela é uma oportunidade que os republicanos não vão deixar passar. Votar contra o projeto poderia afetar as perspectivas de um senador democrata na base eleitoral do partido. Votar a favor poderia torná-los intragáveis para o eleitorado americano em geral.
A história indica que os republicanos têm a vantagem tática. Mas o passado não é necessariamente um guia válido. O passado nos dizia que Trump teria poucas chances de ganhar a indicação de seu partido. Especialistas cometeram o erro de interpretá-lo literalmente, mas não vê-lo seriamente.
Hoje, a maioria da geração Y nos EUA se descreve como socialista. Na prática, estão pensando na Escandinávia – e não na Venezuela. Persuadi-los a participar das eleições em números maiores é o Santo Graal da política democrata. Se Ocasio-Cortes conseguir isso, ela mudará o clima na política americana.
The Economist
Curiosamente, a matéria no Financial Times é simultânea à publicação da revista The Economist que fala, na capa, da “ascensão do Socialismo Milenium”, numa referência à crescente adesão às ideias de esquerda entre jovens nascidos nos anos 1990 e 2000. Conforme o editorial da publicação, “um novo tipo de doutrina de esquerda está surgindo. Não é a resposta para os problemas do capitalismo”.
Alexandria Ocasio-Cortez é novamente apontada como a estrela dessa “nova esquerda” – do “socialismo à americana”. A Economist diz que a nova agenda mira as questões climáticas e identitárias, o enfrentamento das desigualdades via taxação de ricos e a universalização da saúde pública. A rigor, embora sejam propostas avançadas para o país que está no centro do sistema capitalista, não são propostas radicais, de mudança sistêmica. Por isso, podem se adaptar e serem cada vez mais aceitas pelo eleitorado norte-americano.
Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado