Está uma pessoa à espera do debate entre os candidatos Democratas e pimba!, aparece Sócrates a gritar com não sei quem: “Porra! Fo**-se!”. He lá! Que vem a ser isto?
A esta hora a Correio da Manhã TV passa uns filmes ordinarotes, como o magnifico “Histórias de Boazonas”, mas isto já vai para lá das películas que o fabuloso cinema “Stop” de Moscavide pantalhava de vez em quando. Sócrates gritava por causa de umas obras e assumia que estava tudo atrasado… Menos mal. Podia ser um ataque de raiva com António José Seguro ou Teixeira dos Santos. Não. Era contra uma das suas antigas companheiras.
A Correio da Manhã TV, à uma da manhã, para não ser comida pelos outros jornais, passou um magnífico monumento ao segredo de Justiça. Em suma, durante uma hora, reproduziu o audio das escutas que fizeram ao antigo PM, as audiências que o detido manteve com o juiz Carlos Teixeira e o procurador Rosário – e até se ouviu o telefonema sobre a cor do chão na casa de Paris.
Um festim de cusquice, com comentadores e tudo.
A história velha da violação do segredo de Justiça nem serve para conversa. Quem o quebra, a Justiça, é responsável. Não são os repórteres que roubam cassettes ou documentos processuais: têm “acesso” porque a PGR, os tribunais ou os advogados os passam para as mãos dos repórteres. Quando na posse dessa informação, e se ela for de interesse público, o repórter deve publicá-la.
Por isso, o que o magnífico “História de Boazonas”, ou “O Fim da Censura”, ontem mostrava era material sigiloso de um processo que não tem acusação deduzida e que viola todos os princípios de inocência. O interesse público não existe quando se ouve o filho de Sócrates a falar com o pai sobre mudanças. Mas existe quando se ouve o juiz e o procurador a fazer perguntas a um ex-PM.
Entendamo-nos sobre isto: a publicação de material processual não é, repita-se, não é jornalismo de investigação. É ser receptor desse material e torná-lo público. Para isso basta um estafeta. Vai buscar e entrega na ilha de edição para montar peças. Ou nas secretárias da redacção. O que aqui anda não é jornalismo de investigação, embora a partir deste material se possa fazê-lo.
Esta publicação de escutas e gravações devia ser acompanhada por investigação própria, mas o problema maior que temos demonstrado é que a Justiça é um passador que até caroços deixa cair.
O Correio da Manhã, portanto, é defensável até certo ponto. Em qualquer redacção este material era apetitoso.
Mas há que perguntar como diabo a Justiça deixa que tudo se exponha desta forma – nada no programa foi informação nova, apenas ilustrada.
Quer dizer que as fugas já há muito funcionavam num sentido só.
Os advogados de José Sócrates podem estar irritados, mas é à senhora Procuradora Geral da República e à senhora Ministra da Justiça que tem que se perguntar porque raio temos de ouvir Sócrates a discutir a cor do chão da casa de Paris ou saber que o ex-PM ajudou várias pessoas a sobreviver, através de cunhas ao amigo rico.
Estou à vontade: fui o primeiro repórter processado por Sócrates e a única providência cautelar que recebi na vida de jornalista veio do Correio da Manhã, que me impediu de divulgar uma história que envolvia escutas do CM com a Polícia Judiciária. São casos públicos, nada de polichinelo, aliás. Mas daqui da ilha, vê-se isto com alguma ironia.
Por isso, talvez, possa dizer que Sócrates e o CM, neste caso, terão razão em todas as alegações. O primeiro porque vê a presunção de inocência metralhada sem dó. O segundo porque faz aquilo que deve fazer – mal enquadrado, não investigado e cheio de chicanes , talvez, mas faz.
Estes processos só se safam se o jornalismo funcionar e se os agentes envolvidos cumprirem o seu papel. Aos jornais cabe investigar a partir de todas as fontes, à Justiça proteger os processos, aos arguidos defenderem a sua posição, sem ataques alarves por parte da Justiça, em público. Aparentemente, este caso do Marquês está suficientemente manchado para que nada tenha consequências.
No fim? Sendo assim, com tanto caos, no fim Sócrates deve ser acusado de qualquer coisa fiscal menor, perante a trapalhada pública; o CM terá vendido jornais e aumentado audiências porque o público tinha interesse; o edifício da Justiça terá aprendido como se passam informações com base no digital e como a TV não são os jornais em papel e não bastam fotocópias ou apontamentos.
Nem Sócrates nem o CM são os culpados de fazerem o que devem. É o Estado, que através de órgão de soberania permitiu, antes do acesso dos jornalistas “assistentes” aos autos, que muito já fosse público e espalhafatoso.
Tudo com a mesma qualidade da “História de Boazonas”.