Na noite da extradição de Klaus Croissant (1), a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava a sua classificação para o Campeonato Mundial. Algumas centenas de pessoas manifestam-se diante da Santé, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam a noite diante da televisão.
Jean Baudrillard, Filósofo e Jornalista
Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferença. Le Monde: “21 horas. Nesta hora o advogado alemão já foi retirado da prisão da Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro golo”.
Melodrama da indignação. Nem uma única interrogação sobre o mistério dessa indiferença. Uma única razão sempre invocada: a manipulação das massas pelo poder, a sua mistificação pelo futebol. De qualquer maneira, essa indiferença não deveria existir, ela não tem nada a dizer-nos. Em outros termos, a “maioria silenciosa” é desapossada até da sua indiferença, não tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, é necessário que também esta apatia lhe seja insuflada pelo poder.
Que desprezo por trás dessa interpretação! Mistificadas, as massas não saberiam ter comportamento próprio. De tempos a tempos é-lhes concedida uma espontaneidade revolucionária através da qual vislumbram a “racionalidade do seu próprio desejo”, isso sim, mas Deus nos proteja do seu silêncio e da sua inércia.
Ora, é exactamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões da sua vocação revolucionária.
Mas, por outro lado, como consegue desviá-las? Com relação a este facto estranho, pode-se perguntar: por que razão – após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo – ainda se encontram (e se encontrarão igualmente daqui a dez ou vinte anos) mil pessoas para mobilizar e vinte milhões para ficar “passivas”? — e não somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda a boa fé e satisfação, e sem mesmo se perguntar porquê, um jogo de futebol a um drama político e humano?
Klaus Croissant
É curioso que essa constatação jamais tenha subvertido a análise, reforçando-a, ao contrário, na sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulação, e de uma massa prostrada num coma ininteligível. Pois nada de tudo isso é verdadeiro, e ambos são um equívoco: o poder não manipula nada e as massas não são nem enganadas nem mistificadas.
O poder está muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fácil, ou seja, a de assumir a responsabilidade diabólica pelo embrutecimento das massas. Isso conforta-o na sua ilusão de ser o poder, e desvia do facto bem mais perigoso de que essa indiferença das massas é a sua verdadeira, a sua única prática, porque não há outro ideal para inventar, não há nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como facto bruto de distorção colectiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes são propostos.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.16-18, (adaptado para português de Portugal)
Nota do Editor 1 – Klaus Croissant (1931-2002) era um advogado da Facção do Exército Vermelho que o promotor Rebmann mostrou “ter organizado no seu gabinete a reserva operacional do terrorismo alemão ocidental”. Contra a sua prisão foi organizada uma campanha na qual Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guacari, entre outros, tomaram parte. Foi preso em Paris a 30 de Setembro e, apesar de protestos e manifestações na Alemanha, França e Itália, a jurisdição de apelo criminal de Paris decidiu a favor da sua extradição para a República Federal da Alemanha a 16 de Novembro de 1977, a noite do jogo de futebol a que Baudrillard se refere.
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.
Necessary cookies help make a website usable by enabling basic functions like page navigation and access to secure areas of the website. The website cannot function properly without these cookies.
We do not use cookies of this type.
Marketing cookies are used to track visitors across websites. The intention is to display ads that are relevant and engaging for the individual user and thereby more valuable for publishers and third party advertisers.
We do not use cookies of this type.
Analytics cookies help website owners to understand how visitors interact with websites by collecting and reporting information anonymously.
We do not use cookies of this type.
Preference cookies enable a website to remember information that changes the way the website behaves or looks, like your preferred language or the region that you are in.
We do not use cookies of this type.
Unclassified cookies are cookies that we are in the process of classifying, together with the providers of individual cookies.
We do not use cookies of this type.
Cookies are small text files that can be used by websites to make a user\'s experience more efficient. The law states that we can store cookies on your device if they are strictly necessary for the operation of this site. For all other types of cookies we need your permission. This site uses different types of cookies. Some cookies are placed by third party services that appear on our pages.
Cookie Settings
Os Limites da Terra. Reserve já!
Formulário
Fernando Pessoa Contra o Homem Aranha. Reserve já!