Passou a se dedicar a reaprender (sem esperança de muito êxito) a ler, escrever, falar. Não conseguiu mais transar. Arrumou uma namorada platônica por pouco tempo, que o chamava de Hortelino Troca-letra, um dos personagens mais famosos dos desenhos animados Looney Tunes.
O romance acabou quando veio o segundo derrame – desta vez de certa forma buscado, porque passou quase 24 horas seguidas, sem dormir, bebendo num bar, boêmio feliz apesar de tudo – e o meu amigo teve que deixar as aulas, porquanto inúteis, esquecer o sexo e se conformar com uma locomoção muito comprometida, arrastava-se.
As ideias, no entanto, permaneceram lúcidas, coerentes. O que talvez tenha sido pior porque sabia o que havia perdido e continuava a sonhar com o mundo pelo qual lutara com brio antes do derrame, só que estava fora do jogo. Nada mais de política, trabalho e sexo para ele.
Fez-me duas confissões que me abalaram profundamente: a primeira foi de que um sentimento de solidão extrema o havia dominado antes do primeiro derrame. Morava, na época, em Brasília, onde sofria miseravelmente da nostalgia de esquinas, reduto de camaradas e bares, do povo e da música que amava.
A segunda, de que a amizade era uma ilusão porque entre tantos que supunha íntimos apenas um ou dois o frequentavam agora, prisioneiro de quatro paredes, sem discurso, embora com o mesmo coração largo que me cativara.
Pensávamos, eu e ele, que nada mais havia a ser perdido. Compartilhávamos amizade e o bom humor que ele tinha de sobra. Costumava postar-se em frente à TV para assistir a Globo e ironizar, fazer piada, contrapor-se ao inimigo de plantão: a imprensa. Odiava telejornal em uma repetida diversão diária.
Ditadura era coisa do passado, o país estava em luta contra a desigualdade, caminhava para a democracia apesar do neoliberalismo. Portanto, ainda bem, podia viver as sequelas do derrame sabendo que aquele corpo cansado, com mais de 70 anos, não seria convocado para embate contra novo golpe.
Não o vejo há uns cinco anos. Imagino que continue lúcido; se for assim, por certo azedou o humor como todos nós. Sabe que o país viveu novo golpe e deve saber, também, que tirar o interino Michel Temer não é solução. Pode ser um começo, mas não desmontará a estrutura autoritária, sólida e reacionária que se apossou das nossas riquezas materiais e culturais, do nosso futuro soberano.
Vamos ter que começar de novo!
Não sofremos derrame, como o meu amigo, mas praticamente só podemos, como ele, assistir o espetáculo triste que transmitem na “televisão”.
Assistir a escola sem partido sombreando a nossa Educação ainda tão carente.
Assistir os direitos do trabalhador e do cidadão serem retirados legalmente por políticos que elegemos.
Assistir o direito de expressão da sexualidade, opinião e credo ser contestado por um povo que já não se reconhece como parte de um todo. Já não somos iguais.
Assistir o avanço da repressão sobre os desprotegidos de sempre: negros, mulheres, menores (havíamos conseguido tirar essa palavra do nosso dicionário de direitos humanos, trocamos por “crianças e adolescentes”, agora são todos menores e, a maioria, infratores).
Para consolar, ainda temos poesia, como “Equinócio”, de Geir Campos, a seguir. Principalmente, ela nos recorda que a primavera virá com setembro e que as estações sempre mudam, da morte, fruto e flor até o calor da vida que aquece corações.
Equinócio
(Geir Campos, 1981)
Tristes do meu país, eu vos concito
— livres que sois – a virdes para as ruas
e para as praças novas, como vinham
para as antigas vossos ancestrais.Direis: “As ruas não são nossas”. – Donos
delas acaso foram vossos pais?Fermenta uma canção para animar-vos…
Canção? Motivo de cantar, ou tácito
estribilho: “Setembro é primavera!”
(No outro lado do tempo o outono espera.)
Nota: a autora escreve em português do Brasil