É este domingo que o SOS Racismo apresenta a sua Agenda anual para 2020. Capa de autoria de João de Azevedo, e grafismo da DDLX.
Evento Agenda SOS Racismo
Hoje, 24 Novembro, às 18:00
Com Calma – Espaço Cultural
Rua República da Bolívia 5 C, 1500-543 Lisboa
Editorial
Genocídios, panaceia letal dos projetos de desumanização
Ao longo dos últimos 15 anos, mais concretamente desde 2004, data da primeira agenda temática do SOS Racismo, temo-nos esforçado, através do encadeamento cronológico quotidiano de cada do ano, por tornar mais presente a relação das diversas dimensões políticas, teóricas, ideológicas e culturais que se relacionam com o racismo. A escolha dos temas de cada agenda corresponde aos debates contemporâneos que marcam o debate público e as disputas políticas e ideológicas sobre as diversas formas de expressão do racismo na nossa sociedade. O fio condutor de todas estas escolhas temáticas das nossas agendas é a necessidade de, para além de conseguir aliar a militância à nossa própria formação política, contribuir para trazer ao debate, de forma mais simples e pragmática, aspetos estruturantes do racismo que, na maior parte das vezes, estão ausentes por omissão deliberada ou por insuficiências várias.
Deste modo, a agenda deste ano 2020 está centrada no tema dos genocídios que, apesar da sua quase inquestionável relação com a questão racial, continua infelizmente a ser um dos temas pouco abordados no debate público sobre o racismo, mas obviamente cujas origem e consequência têm no colonialismo e no racismo o seu âmago.
O tema dos genocídios, as suas manifestações, os seus significados e os seus impactos ao longo da História da Humanidade, assim como as suas influências nas diversas continuidades históricas que marcam a questão racial, são obviamente controversos e muito complexos.
Por isso mesmo, temos consciência de que não será nesta agenda temática que, por economia de tempo e espaço e pela própria natureza do instrumento, se poderá discutir teórica e ideologicamente cada um destes aspetos da forma mais aprofundada. Naturalmente, face às profundidade e complexidade do tema, assumimos que nossa escolha é não só bastante modesta como evidentemente limitada em termos de abrangência temporal e geográfica. Porque, por agora, o que se propõe é simplesmente trazer de forma pedagógica ao lume a questão dos genocídios, nomeadamente aqueles de que não se fala, com a intenção de lançar o debate sobre uma das questões pouco discutidas e cujos impactos sobre os imaginários coletivos nos processos de racialização, são ainda hoje fulcrais para entender a permanência das estruturas do racismo.
Pese embora situados em épocas e geografias distintas, historicamente os genocídios têm essencialmente um traço comum pelo fato de todos radicarem num projeto de aniquilação e de negação da humanidade que se sustenta em processos de despossessão material e cultural, apropriação económica forçada através da ocupação territorial e dominação política, alimentadas e justificadas pela racialização das populações vitimizadas pelos horrores genocidários. Esta mecânica política, que se constrói por cima ou resulta na mortandade em massa, tem outro traço estrutural comum a quase todos os genocídios: a sua quase sempre colonialidade.
No bojo dos genocídios está intrinsecamente albergado um projeto político de sociedade baseado na ideia de que a existência e a sobrevivência de determinadas comunidades políticas implicam não apenas a subjugação ou exploração de outras, mas também a sua eliminação. Assim, da Escravatura ao Colonialismo, passando pelo Holocausto até às mais variadas chacinas em massa ao longo da História, ancoradas em disputas políticas, podemos constatar que todos os mecanismos de aniquilação humana tiveram como pesada fatura a negação da Humanidade como valor e património universalmente inviolável e inquestionavelmente partilhado por todos os seres humanos, independentemente da sua pertença étnico-racial, geográfica e cultural.
Se naturalmente a ideia não é tanto estabelecer uma métrica do sofrimento e da indignidade da violência que percorre as chacinas em massa dos projetos políticos de extermínio de populações ao longo da História, não deixa também de ser claro para nós que a escolha deste tema tem o objetivo de romper com a hegemonia da classificação, catalogação, interpretação e valoração dos crimes de extermínio como genocídio, como têm sido feitas até agora.
Sendo a nossa uma escolha arbitrária e não exaustiva dos crimes em massa, optamos por nos afastarmos das convenções classificativas do conceito genocídio que deixam de fora muitos horrores históricos de extermínio de populações e circunscrevem a definição de genocídio a uma leitura muito eurocêntrica e totalmente omissa, por exemplo, em relação à Escravatura e ao Imperialismo colonialista e o seu cortejo de assassinatos em massa. Daí que, para além dos mais conhecidos e divulgados extermínios populacionais ao longo da História, encontrar-se-ão, por exemplo, nesta edição da agenda 2020, os muitos genocídios esquecidos ou omissos. Escolhemos falar, por exemplo, dos massacres menos conhecidos ou falados, como a chacina de Leopoldo da Bélgica contra os congoleses ou dos vários massacres coloniais em África e não só, ou ainda do primeiro genocídio do sec. XX perpetrados pelos alemães em África, o dos Hererós e Namaquas, que ocorreu trinta anos antes do início do Holocausto nazi. Assinalamos vários massacres passados ou contemporâneos, como, por exemplo, o extermínio do povo lapão ou sámi nas regiões norte da Noruega, Suécia, Finlândia e da península de Kola, na Rússia; o genocídio filipino perpetrado pelos EUA na guerra com as Filipinas, ou ainda do Holodomor, conhecido por “Holocausto Ucraniano”; o genocídio cambojano; os massacres do Tibete ou de Nanquim; os massacres do Darfur; o extermínio dos Aborígenes; o genocídio povos indígenas pelos colonialismos ocidentais; os massacres dos povos Mapuche; o massacre de Srebrenica no genocídio bósnio; os ainda massacres dos povos yazidi, rohingas, uigures curdos, saharauis, palestianos, etc.
Portanto, assumimos com clareza que, com a escolha do tema do genocídio para a edição da agenda deste ano, o objetivo é tentar resgatar do silêncio as carnificinas motivadas por disputas político-ideológicas, ocultas na narrativa hegemónica sobre os vários horrores da História e, desta forma, contribuir assim para descentrar as suas leituras e interpretações, incorporando um olhar crítico e contra-hegemónico dos seus significados e impactos na questão racial de hoje.
Esperamos, assim, que fique claro para quem usar esta agenda que a ideia não é retratar de forma exaustiva ou cronológica todos os massacres em massa da História, nem discutir concetualmente os alcances e os limites da definição convencionada do genocídio, mas sim, contribuir para romper com as leituras que até agora não foram capazes de registar e elevar a dor e indignidade de atrocidades humanas que não foram acolhidas enquanto tal pela normatividade do conceito de genocídio propagado pelo ocidente. A falta de empatia ou de interesse genuíno para com tantas atrocidades e o desprimor com que são classificadas no sinistro ranking dos malefícios que abalaram a Humanidade, é motivo bastante para não apenas os dar a conhecer, mas até romper com a hierarquização subalternizante das ignomínias que fustigaram partes da Humanidade.
Até agora, a forma como se convencionou erigir determinadas mortandades em genocídios ilustra perfeitamente como, na verdade, a fábrica da comoção coletiva face às barbáries que se abatam sobre muitos povos fora do Ocidente é quase sempre seletiva na “opinião pública” ou publicada. A fábrica da comoção coletiva é tão seletivamente eurocentrista e racista que a maior parte das tragédias assassinas que fustigaram algumas partes da Humanidade é, por omissão ou por negligência despropositada, retratada entre nós sem contundência nem grande indignação moral e, quase sempre, num tom de indiferença.
Numa altura em que a disputa sobre o significado e o impacto dos legados históricos nas formas de expressão do racismo contemporâneo nas nossas sociedades se revelam, simultaneamente, numa vontade de passado e numa obsessão pela absolvição histórica, a memória tem de se transformar numa trincheira política a disputar para garantir que estes crimes não se perpetuam no presente e que não terão nenhuma hipótese de se repetir no futuro. É por isso que, mais do que uma trincheira, a memória é um lugar donde se devem projetar as lutas do presente por um futuro melhor, porque lembrar as atrocidades que fustigaram a Humanidade exige muito mais do que o dever de não esquecer. É uma exigência que convoca sobretudo a obrigação de continuar a lutar contra toda e qualquer barbárie que possa beliscar qualquer parte da humanidade.
Estamos cientes que desenterrar todos os esqueletos putrefactos das barbáries contra a Humanidade do silenciamento das convenções classificativas das atrocidades mortíferas é, sem dúvida, uma tarefa difícil e dolorosa. Mas sem esta capacidade de enfrentar os horrores do passado, mais difícil se tornará a tarefa de operar uma catarse histórica que permita trilhar o caminho da reparação simbólica e real das injustiças da História.
Por acreditar que a disputa pela memória e as suas continuidades históricas é a disputa sobre as formas de enfrentar as suas consequências nos dias de hoje, mesmo com todas as suas limitações, estamos convictos que a escolha do tema dos genocídios para a agenda 2020 participa das possibilidades de resgatar do silêncio e do esquecimento todos os sofrimentos humanos que ainda hoje marcam as relações sociais das nossas sociedades.
MB- 29-08-19
Capa de autoria de João de Azevedo e grafismo da DDLX
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