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João de Sousa

Domingo, Julho 28, 2024

Suores e labores

Não me lembro bem qual era o mês… O sol já aquecia fraquinho e a praia era menos frequentada, os ferros em brasa já tinham começado a marcar os corpos atentos e desatentos, já não havia mangas nos cestos das quitandeiras[1] … o tomate começa a regressar as banheiras, o pregão ouvia-se … cem … cem no meu caleluia[2], bem abonado. As peixeiras estavam mudas, segundo os pescadores este tinha sido um ano triste, só saía pequenas quantidades de cabuenha[3] era preciso esperar que o frio terminasse e se os ventos mudassem teríamos peixe… peixe com abundância … sublinhavam.

O quintal do quindjugo[4] estava repleto de corpos desesperados que trocavam a moeda ganhada por um copo de anestesia. Anestesiavam seus corpos para abrandar a ansiedade e aceitar a realidade, nada estava perdido e nem era uma maré de azar, apenas um difícil momento.

As salinas estavam tristes e apenas o sol sorria para elas, reflectindo na inundação dos canteiros a promessa de um amanhã melhor, – É mesmo assim mana, a ultima chuva foi muito forte agora temos de esperar a água secar, para começarmos a produzir, enquanto isso o meu marido vai puxar rede na praia e eu vou à nossa lavra aproveitar a chegada do cachimbo para plantar o que puder… – segredou-me a mulher sorrindo.

Do outro lado, quem tinha salário aproveitava o fim da tarde para pôr as conversas em dia e beber com os amigos, e quem não tinha salário também fazia o mesmo… e com um pouquinho de emoção os abraços prolongavam-se até ao cair da noite, e ressuscitavam com o novo amanhecer, outros mais carentes confundiam-se no beijo adultero que curava desesperos.

Agora lembro-me que já era cachimbo e o sol insistia, mas logo era intimidado pelo frio que se impunha com autoridade e espelhava nos cieiros que mapeavam os pés das crianças e adultos de peles desidratadas.

Tinha regressado de mais uma caça ao emprego, de pés cansados e alma desesperada, carregava na mão direita o velho currículo que acabava de ser actualizado com mais um ano de desemprego e na outra mão os meus roçado sapatos, têm de ser altos dá mais elegância. Na deselegante procura, onde a alternância entre quilómetros a pé e metros de táxi, os pés são confortados no par de chinela.

Não me lembro bem qual era o mês… a saudade voltou a visitar-me desta vez vinha com mais frequência, às vezes doía, às vezes nem por isso… e outras vezes eu a confrontava com uma taça de vinho transbordando de porquês… e já tinha decidido, e depois de tanto esforço não podia desistir. É uma vergonha dizia para mim mesma … Antes só que mal acompanhada, confortava-me.

O flamingo poisou no mangal e pintou de rosa a minha persistência, lembrei-me que estamos em Outubro e o Outubro é rosa, cor de guerra, de prevenção, cor de empatia, cor que veste as guerreiras que enfrentam o cancro. Estamos juntas, em Outubro, Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro…

[1] Quitandeiras – vendedeiras (bessaganas)
[2] Caleluia-Motas com atrelados, expressão usada para descrever uma medida exagerada de um produto a ser comercializado
[3] Cabuenha – peixinhos
[4] Quindujgo(macau)- Bebida fermentada, de massambala

A autora escreve em PT Angola

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