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Sábado, Dezembro 21, 2024

Superar a vertigem antes que a democracia acabe

Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” A frase de Che Guevara chega em 2019 como um verdadeiro desafio. Afinal, no Brasil de Bolsonaro, que vai de 39 kg de cocaína num avião presidencial à venda de bijuteria de nióbio no G20 em um piscar de olhos, parece impossível não se embrutecer. Por isso, é impressionante que Petra Costa tenha feito de Democracia em Vertigem um dos mais potentes registros deste caos em que o País foi lançado, sem perder a leveza.

Em março deste ano, o mundo da sétima arte perdeu uma de suas maiores entusiastas. Atrás das câmeras, Agnés Varda se consolidou na Nouvelle Vague francesa com sua obra feminina e feminista e abriu caminho para as mulheres que vieram depois. Na esteira das homenagens à diretora belga, Petra Costa confessou que quando descobriu o cinema de Agnés sentiu que encontrava ali inspiração para o tipo de obra que sonhava em fazer.

Elena é o primeiro filme de Petra. O Brasil era outro quando ele foi lançado, em 2012. Os jovens artistas ainda tinham espaço, incentivo e fôlego para se dedicar às complexidades da alma humana. Isso acontecia não só no cinema – mas na música, na literatura, nas artes plásticas. A arte não precisava, necessariamente, ser trincheira.

Se hoje Democracia em Vertigem se destaca na lista de melhores filmes do New York Times ao retratar o Brasil do golpe contra Dilma Rousseff, a primeira obra de Petra está distante da política. É um relato sobre a morte de sua irmã mais velha, Elena. Apesar de ser um assunto delicado e dolorido, ela consegue tratar com sensibilidade e beleza as memórias da família sem fazer do filme um dramalhão pretensioso sobre as dores da classe média. Os recortes e colagens nos remetem à obra de Agnés, a mestre em fazer da telona o palco perfeito para aliar arte à política sem deixar de lado uma profunda preocupação estética.

Cena do filme Democracia em Vertigem, dirigido por Petra Costa e lançado pela Netflix

Essa sensibilidade, aliada à capacidade de trazer para a conjuntura recortes de sua vida pessoal, ou vice-versa, são a assinatura de Petra no cinema brasileiro. Quando foi anunciado o lançamento de Democracia em Vertigem, uma produção Netflix, temi que uma das jovens diretoras com mais potencial do País se perdesse em uma estética comercial apenas para vender uma boa história ao grande público.

Mas Petra conseguiu fazer de Democracia em Vertigem um relato potente da conjuntura nacional sem deixar de lado suas pitadas de poesia, principal característica de seus filmes anteriores, Elena e O Olmo e a Gaivota.

Ao longo de duas horas, ela reconstrói a história recente do Brasil que, por um breve momento, acreditou na solidez do Estado de Democrático de Direito após o fim da ditadura militar. A voz mansinha narra os fatos com vaivéns que se amarram aos fragmentos de sua vida pessoal. A diretora e nossa democracia têm quase a mesma idade, mas o filme mostra o risco iminente de que a segunda não faça mais festa nos próximos anos.

Imagens exclusivas, ângulos inesperados, questionamentos duros e uma análise sensível fazem de Democracia em Vertigem urgente e necessário. Com dureza, mas sem perder a ternura, Petra confessa seus medos e decepções com os governos Lula e Dilma. Certamente ela não está sozinha no cordão dos que acreditaram que seria possível um projeto de governo romper com as velhas práticas do sistema político brasileiro. Mas como ela também mostra, não importa o partido ou a ideologia, os interesses da elite nacional sempre sobressaíram ao processo coletivo.

O que alterou a ordem natural do sistema foi a operação Lava Jato, que, para conseguir destituir o PT do governo, sacrificou um braço importante da elite local, o empresariado da construção civil. Essa análise quem faz é a mãe da diretora, que, assim como Dilma Rousseff, entregou a juventude para combater a ditadura militar e viveu anos na clandestinidade.

Desde que foi lançado, há pouco mais de uma semana, o filme tem levantado debates acalorados entre os diversos setores da esquerda brasileira. Enquanto uns o colocam num pedestal, outros acusam a diretora de ser uma defensora previsível da democracia burguesa.

Entretanto, Democracia em Vertigem se propõe a contar – através dos bastidores dos palácios e das grandes manifestações que sacudiram o Brasil nos últimos anos – a história que aconteceu, e não a que gostaríamos que tivesse sido. A única forma de a narrativa ser outra é aprender com os erros cometidos até aqui, superar a vertigem e construir um projeto sólido para avançar à esquerda – mas tudo isso… antes que a democracia acabe.


por Mariana Serafini, Jornalista |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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