Fiquem ambos, SNESup e FENPROF, com a noção de que com a publicação do regime, se vier a acontecer, não se acaba o trabalho. Antes começa um ciclo mais exigente.
Superior Público
Quando em 1979 foi publicado “o“ Estatuto da Carreira Docente Universitária os dirigentes dos vários sindicatos então existentes, constituídos com base em zonas geográficas, descansaram: agora que já têm um Estatuto, vamos deixar de ouvir falar deles.
O Estatuto sobreviveu, foi melhorado até na ratificação parlamentar de 1980 e transposto numa versão infelizmente menos “garantística” para o ensino superior politécnico, mas continha (e o do politécnico também) normas sobre “especialmente contratados”, isto é contratados fora da carreira, que acabaram por servir, mercê de expedientes, para empurrar para essa situação a generalidade dos novos admitidos no tempo de Guterres / Marçal Grilo no quadro da expansão da oferta de ensino superior público.
No entanto depois de uma iniciativa da FENPROF ter feito o Tribunal Constitucional reconhecer a existência de uma omissão legislativa em matéria de subsídio de desemprego na Administração Pública, a Federação contentou-se em obter de Marçal Grilo a sua regulamentação para os professores “contratados” do Básico e Secundário, avançando depois com um pedido para que o parlamento legislasse para o ensino superior um subsídio de desemprego restrito aos docentes de carreira. No Sindicato Nacional do Ensino Superior – SNESup a reacção inicial do Presidente da Direcção então de serviço foi do tipo “então não cumprem e ainda são recompensados”, mas os dirigentes defensores do subsídio de desemprego conseguiram que o sindicato levasse o assunto a Secretaria de Estado do Ensino Superior obtendo do então titular José Reis uma reacção em tudo idêntica(i). Entre 2001 o SNESup articulou no terreno e nos tribunais a defesa do emprego docente com a luta pela criação do subsídio de desemprego para o conjunto da Administração Pública, mas tal obrigou a uma reorientação directiva interna.
O Relatório de Actividades da CGTP relativo a 2007 considerou a medida como negativa. Os dirigentes sindicais da função pública consideravam, pelos vistos, que a criação do subsídio de desemprego dava azar. Originalidade sindical.
Quanto aos vínculos dos “especialmente contratados” – apesar de em regime transitório da revisão dos Estatutos de 2010 se ter conseguido garantir o acesso à carreira de muitos dos então “equiparados” do politécnico – a situação manteve-se e agravou-se, sendo o ensino superior público, apesar da introdução de alterações pelo parlamento ou talvez porque neste a apreciação dos diplomas de Mariano Gago foi desviada da Comissão de Trabalho e Administração Pública para a de Ensino Superior, Ciência e Cultura mais sintonizada com as “tradições”, o único sector da actividade a manter a possibilidade de renovação indefinida de contratos a termo, contra o disposto na Constituição da República Portuguesa (CRP) e até da sacrossanta Directiva Europeia (Directiva 99/CE/70) que teve origem numa posição do Conselho Económico e Social e que iria até obrigar – por pressão de comissões de contratados e não dos sindicatos – Nuno Crato a introduzir a chamada “lei-travão” (ii).
Superior Público Fundacional
Quanto às Universidades (Públicas) – Fundações estão, igualmente, sem qualquer suporte na CRP, na Directiva 99/CE/70 e no Código do Trabalho, a tentar fazer assentar os seus estatutos privativos num regime de direito privado que desregula totalmente a situação dos “especialmente contratados” permitindo a renovação indefinida dos seus contratos de direito privado(iii).
Superior Privado
Simplificando um pouco, o Superior Privado nasceu por um lado de projectos de escolas profissionais, alguns ligados a estruturas da igreja católica, outros subsequentes à “esporificação” da Universidade Livre, e foi estimulado pela política liberal do Ministro Roberto Carneiro na primeira metade dos anos 1990.
Contra o que se pensa hoje em alguns sindicatos que perderam a memória, as relações laborais no superior privado não se estabeleceram num vazio legal: veja-se o caso da Universidade Autónoma de Lisboa que foi celebrando sucessivos contratos a termo com os seus docentes até que, quando estavam prestes a converter-se em contratos a tempo indeterminado os denunciou a todos, passando todo o pessoal abrangido para contratos de prestação de serviços.
Tão pouco data de 2007 e do RJIES a previsão de que o exercício da docência no ensino superior privado seria regulado por Decreto-Lei. Tal norma constava já dos Estatutos do Ensino Superior Particular e Cooperativo de 1989(iv) e de 1994(v).
O SNESup com intervenção directa do seu então Presidente da Direcção Jorge Pedreira procurou desde os seus primeiros anos de existência mobilizar a Inspecção-Geral do Trabalho contra actuações deste tipo.
A FENPROF propôs a celebração de um Contrato Colectivo de Trabalho para o Ensino Superior Particular e Cooperativo e levou a proposta a conciliação no Ministério do Trabalho onde ficou aberta anos e anos sem sucesso, sendo que a proposta se limitava a reproduzir a estrutura de categorias das carreiras públicas com criação de situação mal definida de “especialista” para os especialmente contratados. Para os assistentes que não fizessem doutoramento ficcionava-se uma caducidade do contrato por impossibilidade superveniente de o trabalhador continuar a prestar o seu trabalho e a entidade empregadora a recebê-lo, isto é, podia substitui-lo por outro também sem doutoramento(vi). Originalidades sindicais.
Durante anos sucessivos um número crescente de entidades patronais a conselho da sua associação veio a celebrar com os seus “colaboradores” “contratos de docência” que eram de facto contratos de trabalho subordinado, mas diziam não o ser. De modo geral os casos de litígio acabavam em tribunal a quem, independentemente da qualificação do contrato, cabe ajuizar da sua natureza, mostrando-se as entidades patronais dispostas a estabelecer acordo … com os docentes que aceitassem sair.
A circunstância de em 1989, 1994 e 2007 terem sido publicados diplomas remetendo para decreto-lei a definição do regime jurídico do exercício da docência do ensino superior veio reforçar a posição das entidades patronais junto de alguns tribunais e os próprios sindicatos – sobretudo os da FENPROF – começaram a falar na existência de uma “omissão legislativa”, dando por aí a impressão de que os seus associados que exerciam funções no superior privado estavam subtraídos à aplicação da lei geral do trabalho. Aqui também, originalidades sindicais.
O SNESup optou mesmo – entre 2013 e 2015 – por elaborar sucessivas versões de um projecto de decreto-lei a que chamou de RPDIIP – Regime Jurídico do Pessoal Docente e Investigador das Instituições Privadas, que teve na sua génese um texto discutido na Universidade Lusófona, o qual foi objecto de sucessivas ampliações através do método, do copy paste , e foi enviado à então Secretaria de Estado do Ensino Superior antes mesmo de pedir ao Conselho Nacional autorização para o negociar, sendo a autorização aprovada em Conselho Nacional sem qualquer reunião prévia de associados do privado, texto que continha e contém aspectos lesivos destes associados, tais como fixar um horário de trabalho semanal correspondente ao genericamente fixado no Código de Trabalho para a generalidade dos trabalhadores por conta de outrem quando a maioria das instituições já tinha como referência o horário tradicional no ensino público, e não considerar direitos adquiridos em matéria de vínculos. De novo, originalidades sindicais.
Um ano depois o sindicato corrigia estes aspectos numa proposta de CCT que diz estar há quatro anos a negociar no Ministério do Trabalho com a associação patronal, sem que alguma vez tenha enviado aos seus representados as actas das reuniões e mesmo a própria composição das delegações. Entretanto a deliberação aprovada está publicada no site e as entidades patronais vão incorporando nos seus regulamentos internos estes aspectos negativos. Mais originalidades sindicais.
Note-se que logo em 2008 o SNESup e a FENPROF, conjuntamente, pediram à tutela que promovesse a respectiva audição sobre os projectos de regulamentos de carreiras das instituições do ensino superior que lhe fossem enviados com vista a registo. O Secretário-Geral Raul Capaz Coelho manifestou na altura a intenção de dissuadir as instituições de apresentarem projectos enviesados no sentido de rejeição do modelo do Código do Trabalho, mas a análise dos Estatutos e regulamentos concretamente registados e mandados publicar pela tutela mostra que algumas fizeram questão de reafirmar a possibilidade de exercício de funções docentes em regime de prestação de serviços.
Regime do pessoal docente e de investigação dos estabelecimentos de Ensino Superior Privados
Em meados do passado mês de Maio o ministério de tutela apresentou aos sindicatos uma proposta com a designação supra que, como referi, se encontrava já prevista desde 1989, voltou a estar prevista em 1994 e novamente no RJIES de 2007(vii), cuja proposta de Lei aliás apontava, o que é pouco conhecido, para a aplicação do Código do Trabalho ao ensino superior privado, sendo a actual fórmula do Artigo 53º do RJIES “O regime do pessoal docente e de investigação das instituições privadas é aprovado por decreto-lei.” mais “neutra”.
Os sindicatos deveriam promover a discussão deste projecto entre os destinatários em particular quando deixaram de os ter nos seus órgãos e até nas próprias equipas de delegados sindicais. Como ainda não o fizeram, deixo aqui algumas notas sobre o regime previsto em matéria de carreiras, vínculos, remunerações, horários de trabalho e salvaguarda de direitos adquiridos.
Começando pelas remunerações, que um correspondente meu diz ser a “questão central” , anoto que não está previsto o seu nivelamento pelas remunerações do ensino superior publico. Remete-se para contratação colectiva as “Bases remuneratórias das categorias de carreira docente e de investigação “ , admite-se como mera possibilidade, que exista um “suplemento remuneratório” de dedicação exclusiva e que os regulamentos das instituições obriguem os investigadores a dar aulas rem remuneração adicional. Isto não é propriamente garantir uma carreira equivalente à das instituições públicas.
Em matéria de vínculos o regime proposto, tal como os estatutos de carreira do público, tal como os regulamentos de regime de direito privado tipo Nova que começam a surgir nas Universidades públicas – Fundações, prevê que o pessoal especialmente contratado tenha contratos a termo indefinidamente renováveis se exercer funções a tempo parcial, e em princípio deve exercê-las nesse regime.
Ora isto levanta alguns problemas sérios:
- por um lado, não existe na lei geral portuguesa ou comunitária qualquer incompatibilidade entre o exercício de funções a tempo parcial e a contratação por tempo indeterminado;
- por outro, o docente a tempo parcial não é necessariamente um “acumulador” com outro emprego e desde que em 2009/2010 esta orientação passou a constar dos estatutos das carreiras do público muitas instituições passaram a utilizar pessoal qualificado e mal pago em vez de recrutarem para a carreira;
- acresce que a lei geral portuguesa e comunitária prevê que o pessoal de carreira deve ter possibilidade de exercer funções a tempo parcial designadamente por razões de ordem familiar e que este tipo de formulação inviabiliza essa possibilidade
De modo geral, saudando-se o enquadramento da relação laboral no Código do Trabalho, que exclui ficções baseadas na figura de prestação de serviços, julgo que em alguns aspectos o texto deveria clarificar quando se aplica e não se aplica o Código do Trabalho e legislação especial conexa, designadamente:
- excluindo a possibilidade de contratação de professores e investigadores em regime de trabalho temporário;
- restringindo a aplicação do contrato de trabalho de muito curta duração à realização de cursos intensivos;
- fixando orientações sobre a redução de pessoal em situações de “crise de mercado” e sobre a forma de aplicação das salvaguardas decorrentes da figura da “tenure”, por exemplo através da atribuição de trabalho em outros estabelecimentos do grupo.
- esclarecendo que o período experimental de cinco anos (ou de um ano para as categorias superiores da carreira) pode ser reduzido ou dispensado por acordo, nos termos do CT, com base no currículo do contratado e só poderá cessar em função de uma avaliação final e não a todo o tempo.
Em matéria de horários de trabalho, o MCTES introduz aqui uma norma de definição de valorização de preparação de aulas que ganharia em ser aplicada ao próprio ensino superior público, em que a Secretaria – Geral está perfeitamente a par da lei da selva em que se vive – e propõe as 35 horas semanais. Não sei se o SNESup se baterá pelas 40 horas. Se o fizer será / continuará a ser mais uma originalidade sindical.
Enfim, em termos de salvaguarda de direitos adquiridos haverá que ter em conta a necessidade de as situações dos docentes considerados contratados em contrato de docência ou de prestação de serviços serem redefinidas com efeitos à data que se constituíram, como chegou a ser votado em Assembleia Geral do SNESup em 27 de Janeiro de 2016, cujas deliberações foram depois anuladas judicialmente tanto por as propostas não terem sido enviadas aos associados pela Mesa da Assembleia como por falta de quórum.
A terminar, um reparo: o texto entregue pelo MCTES ao SNESup não foi ainda enviado por este à generalidade dos associados, apesar de se justificar uma análise comparativa dos regimes fixados para os docentes e investigadores das instituições públicas, tanto tradicionais como fundacionais, e do regime agora proposto para o superior privado.
Mais ainda: um mês depois de recebido do MCTES, o texto não foi ainda enviado pelo SNESup aos mais directos e imediatos interessados – os seus associados do superior privado.
Cada vez mais original. Felizmente a FENPROF publicou-o no seu site.
Fiquem ambos, SNESup e FENPROF, com a noção de que com a publicação do regime, se vier a acontecer, não se acaba o trabalho. Antes começa um ciclo mais exigente.
Notas
(i) Imagine-se a cara com que ficou o dito Presidente da Direcção. Vim depois a saber que durante o tempo que lhe restou no cargo ele e os seus próximos chegaram a pedir a companhias de seguros propostas para a criação de um seguro de desemprego.
(ii) https://www.jornaltornado.pt/a-lei-de-gresham-e-os-contratos-no-ensino-superior/
(iii) https://www.jornaltornado.pt/o-rjies-e-as-universidades-fundacoes/
(iv) Decreto-Lei nº 271/89, de 19-8.
(v) Decreto-Lei nº 16/94, de 22-1.
(vi) Numa reunião posteriormente realizada no Ministério de Tutela um dos representantes da associação patronal propôs um enquadramento juridicamente mais correcto, ou seja, o contrato do assistente seria celebrado por tempo indeterminado, com condição resolutiva de realização do doutoramento num certo prazo.
(vii) Lei 62/2007, de 10-9.