O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES) aprovado pela Lei n.º 62/2007 de 10 de Setembro, inclui duas normas sobre ensino superior privado que até agora pareciam muito prometedoras:
Artigo 52.º
Corpo docente dos estabelecimentos de ensino superior privados
1 – Aos docentes do ensino superior privado deve ser assegurada, no âmbito dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, uma carreira paralela à dos docentes do ensino superior público. 2 – O pessoal docente dos estabelecimentos de ensino superior privados deve possuir as habilitações e os graus legalmente exigidos para o exercício de funções da categoria respectiva no ensino superior público.
Artigo 53.º
Regime do pessoal docente e de investigação das instituições privadas
O regime do pessoal docente e de investigação das instituições privadas é aprovado por decreto-lei.
Quando se diz que deve ser assegurada uma carreira paralela à do ensino superior público é lógico considerar que para as condições de acesso a cada categoria e de progresso para categoria superior de carreira, o conteúdo funcional, a carga horária semanal, a estabilidade do vínculo e as remunerações auferidas devem ser paralelas às do ensino superior público.
E o instrumento que deve assegurar aos docentes essa carreira paralela, é em primeira mão, o estatuto da instituição privada ou, quando tal remissão seja feita no estatuto da instituição, o regulamento do pessoal docente ou da actividade docente.
A ser publicado um decreto-lei sobre regime de pessoal docente ou investigador este deveria regular, tanto quando possível com um mínimo de uniformidade para o conjunto das instituições privadas a forma de assegurar este paralelismo e clarificar, quando necessário, a situação do pessoal docente já ao serviço das instituições.
Ora o projecto de proposta de lei – PL 149/XXIII/2023, adiante PROJECTO – que pede autorização legislativa para aprovar o decreto-lei previsto no Artigo 53º do RJIES, e que vai na linha do articulado entregue em 2021 às associações sindicais e divulgado apenas pela FENPROF(i), é ainda mais refinado que o anterior:
- considera que “carreira” é apenas uma nomenclatura de categorias, cuja adopção já foi livremente assegurada pelas próprias instituições privadas nos últimos anos “Estas condições têm sido garantidas pelos estabelecimentos de ensino superior privado que têm previsto a nível estatutário as condições a que alude o mencionado artigo 52º do RJIES”, e, em matéria de remunerações e de horários de trabalho NÃO EQUIPARA as condições às do ensino superior público, NÃO DEFININDO uma remuneração mínima para o pessoal contratado em tempo integral, remetendo a compensação por dedicação exclusiva para um suplemento facultativo a prever em regulamento interno, e fixando a prestação de trabalho semanal em 40 horas;
- restringe o conteúdo obrigatório do decreto-lei ao regime de contratação e aos vínculos;
- considera que em matéria de contratação e de vínculos houve uma OMISSÃO LEGISLATIVA nos últimos 34 anos, isto é de 1989 até à futura publicação do decreto-lei;
- consagra implicitamente para uma parte do pessoal, dito especialmente contratado, um regime sem as garantias do Código de Trabalho e da legislação europeia que este afirmou pretender transpor;
- não dispõe sobre o RECONHECIMENTO DOS VÍNCULOS do pessoal que iniciou funções ao longo desses 34 anos.
O diploma bem merece portanto a qualificação de LEI MALANDRA.
Desenvolvendo
Remunerações a tempo integral e acesso a regime de dedicação exclusiva
O artigo 24º do PROJECTO remete a aprovação das tabelas remuneratórias para as entidades instituidoras e para instrumento de regulamentação colectiva de trabalho as “bases remuneratórias” das categorias de carreira docente e de investigação, o que, sendo por um lado vago, constitui por outro uma restrição inadmissível à negociação colectiva das remunerações do restante pessoal.
Tudo visto e ponderado, julgo que seria preferível que o PROJECTO consagrasse uma escala indiciária para as categorias de carreira e para as de assistente e leitor(ii), deixando embora para cada entidade instituidora a fixação do valor do índice da base da escala indiciária, sem prejuízo deste, nos termos gerais do Código do Trabalho, vir a ser fixado uniformemente para todas as instituições por negociação colectiva.
E, em rigor, atendendo a que mesmo no ensino superior público as remunerações de tempo integral estão desvalorizadas face a outras carreiras, o PROJECTO poderia consagrar escalas indiciárias em dedicação exclusiva, abandonando a técnica do suplemento remuneratório facultativo. Se o não fizer, e tendo em conta que as universidades públicas fundacionais têm vindo a tentar consagrar na sua contratação “em regime de direito privado” uma “dedicação plena” diferente do regime de dedicação exclusiva, poderá haver numa futura revisão do ECDU e do ECPDESP a tentação de generalizar a técnica do “suplemento remuneratório”.
Tenha-se entretanto em atenção que segundo o artigo 19º, nº 1 do PROJECTO uma redução do número de alunos pode determinar a redução do número de horas de leccionação contratadas – e consequentemente de remuneração – o que está consagrado no texto em linguagem tão soft que nem se dá por ela:
“A entidade instituidora do estabelecimento de ensino superior pode adequar o número de horas de leccionação contratado com o docente, quando se verifique uma alteração superveniente do número de estudantes “
O que se aplica tanto ao pessoal especialmente contratado a que se refere o artigo 18º(iii) como ao pessoal de carreira a que se refere o artigo 17º, sendo que neste caso lhe poderá talvez ser retirado o enquadramento na carreira.
Digo “talvez” porque o PROJECTO não consagra a garantia da tenure prevista nos Estatutos de Carreira do Ensino Superior Público nem afasta a aplicação do Código do Trabalho no domínio da realização de despedimentos por motivos económicos. O despedimento pode ocorrer como consequência de processo disciplinar ou de avaliação de desempenho, que no PROJECTO se considera “inadaptação superveniente ao posto de trabalho”. Mas as outras vias estão abertas.
A prestação de 40 horas de trabalho semanal
No projecto de regime apresentado em 2021 às associações sindicais o número de horas de trabalho semanal era de 35 horas, o que na altura aplaudi.
Por ser o regime aplicado então ao ensino superior público, e ser de 35 (ou 36 horas) o referencial dos regulamentos internos de actividade docente ou de pessoal docente publicados pelas entidades instituidoras de estabelecimentos de ensino superior privado e por ser esse o limite geralmente consagrado nos contratos individualmente assinados na altura.
Por apesar de em projectos de “decreto-lei” emanados do SNESup aparecer como obrigatória a menção das 40 horas porque no Código do Trabalho “era assim”, a Secretaria – Geral do ME/MCTES ter maior discernimento jurídico: Superior privado – entre o sindicato e o Ministério os professores estão entre a espada e a parede.
Conviria perceber por que razão o MCTES em diploma conjunto com o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, vem agora propôr as 40 horas. Não se diga que o limite pode ser reduzido por contratação colectiva uma vez que a FENPROF e o SNESup têm más experiências nesse domínio(iv) e que o PROJECTO, a publicar, recordo, ao abrigo de uma autorização legislativa, é o instrumento idóneo para consagrar um limite horário semanal diferente do limite máximo do Código do Trabalho.
Não excluo que se pretenda concluir que o pessoal docente até agora ao serviço dos estabelecimentos de ensino superior não tem direito à contratação por tempo indeterminado, por estar em “tempo parcial”, inferior às 40 horas(v).
Entretanto é nebulosa tal como aliás no ensino superior público a possibilidade de redução a tempo parcial sem perda do estatuto de carreira ao abrigo da legislação sobre parentalidade.
A famosa OMISSÃO LEGISLATIVA
A existência de previsões de publicação de um decreto-lei próprio em diplomas de 1989, 1994 e 2007, sendo este o famoso RJIES, foi na altura aproveitada pelas entidades patronais e pela sua associação – APESP – para negarem a possibilidade de se estabelecerem no ensino superior relações contratuais enquadradas na legislação geral de trabalho e, a partir de 2003, no Código de Trabalho. Depois deste publicado, o então Secretário de Estado Luís Pais Antunes insistia que faltaria publicar um Livro II do Código, regulando autonomamente as relações especiais de trabalho, como seriam as do ensino superior.
Em 1992 tive de recorrer aos Tribunais de Trabalho para tentar anular a decisão da entidade instituidora do Instituto Superior de Gestão, no qual exercia funções como Professor Convidado a tempo parcial (50%) e por tempo indeterminado, de reduzir o meu contrato apenas aos segundos semestres lectivos, e em 1994, estando o processo ainda pendente, para anular uma nova decisão que pura e simplesmente dispensava o meu trabalho. Ganhei em primeira instância, isto é no Tribunal de Trabalho, em segunda instância, isto é na Relação, com um acórdão que na parte doutrinária foi publicado na Ensino Superior – Revista do SNESup, e no Supremo Tribunal de Justiça, estávamos em 2001. E sempre com base no meu contrato, uma vez que ao contrário do que as direcções sindicais muitas vezes afirmam, os docentes do ensino superior de modo geral não estão a recibos verdes.
A certa altura tanto a FENPROF como o SNESup começaram a falar de OMISSÃO LEGISLATIVA para qualificar a não publicação do decreto-lei previsto no artigo 53º do RJIES. Ouvi José Moreira desenvolver este raciocínio numa sessão realizada há anos na Universidade Lusófona. Intervim para explicar que o diploma já se encontrava previsto nos textos legais de 1989 e 1994 mas foi como se não tivesse falado. Todos sabemos o que os deuses fazem àqueles que querem perder…
De modo que temos em mão um PROJECTO que diz expressamente que a situação de OMISSÃO LEGISLATIVA se verifica desde 1989, com a sugestão implícita de que durante estes 34 anos não se formaram nem se consolidaram no ensino superior privado relações de trabalho.
O pessoal especialmente contratado
O texto do PROJECTO é particularmente nebuloso em relação à possibilidade de se contratar pessoal com contratos anuais ou semestrais indefinidamente renováveis, conforme sucedeu muito tempo nos ensinos básico e secundário, contrariando a “legislação europeia” e sucede ainda, sem vergonha, no ensino superior público.
Talvez o nº 1 do Artigo 14º “O pessoal docente e de investigação de carreira e o pessoal docente e de investigação especialmente contratado em regime de tempo integral, vincula – se mediante contrato de trabalho por tempo indeterminado…” pretenda excluir o pessoal docente e de investigação especialmente contratado em regime de tempo parcial do acesso a contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Mas este poderia sempre, salvo interpretação em contrário, vincular-se por tempo indeterminado em tempo parcial por simples decurso do tempo nos termos do Código do Trabalho.
Há que ter cuidado com estes alçapões voluntários nas leis. Foi assim que ainda antes da revisão do ECDU e do ECPESP em 2009 começaram a surgir “falsos tempos parciais”, sacrificando candidatos que estariam disponíveis para exercer funções a tempo integral, e “falsos assistentes convidados”, já titulares do grau de doutor, possibilidades que a presente redacção do PROJECTO aliás não elimina.
E em geral a existência de garantias ao pessoal convidado a tempo parcial – que não impede a supressão do posto de trabalho com indemnização, nos termos gerais – cria condições para que a actividade docente se faça com maior independência.
O reconhecimento dos vínculos
Remeter para instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, como se prevê no Artigo 30º, alínea c) do PROJECTO e constava já do articulado de 2021 “Regimes transitórios que salvaguardem os direitos adquiridos dos dos docentes e investigadores que à data de entrada em vigor do presente decreto-lei exerçam funções nos estabelecimentos do ensino superior” é da parte do MCTES e do Ministério do Trabalho e da Segurança Social uma fuga às responsabilidades.
As partes dificilmente se entenderiam e não me admiraria que a associação patronal APESP acabasse por mobilizar um qualquer “sindicato zero” para concluir um acordo que libertasse os seus filiados de dificuldades.
Será preferível pedir que no período de adaptação as instituições discutam critérios com os sindicatos e elaborem listas nominativas de transição, encaminhando-se para as instâncias de resolução alternativa de litígios previstas no PROJECTO os casos controversos. Seria mais seguro e sobretudo mais rápido.
Notas
(i) O SNESup, que não divulgou este articulado de 2021, foi forçado a fazer um simulacro de debate da questão depois do autor destas linhas ter divulgado na altura o articulado em causa, que a FENPROF publicara no respectivo site. Afirmou posteriormente ter tomado uma posição em “reunião plenária” mas não a divulgou. Já em relação ao articulado que lhe foi entregue pelo MCTES em 2023, publicou-o no seu site e emitiu um princípio de posição. Desta vez, a FENPROF nem terá publicado o articulado.
(ii) Repare-se que nas disposições transitórias do ECDU e do ECPDESP revistos em 2010, a Assembleia da República definiu, sob proposta do SNESup, que os assistentes da universidade e do politécnico deveriam ser considerados como integrados em carreira.
(iii) Em rigor percebe-se a sensibilidade das entidades instituidoras, leia-se patronais, neste domínio, uma vez que inicialmente os docentes objecto de redução de carga horária e de remuneração ganhavam facilmente nos Tribunais de Trabalho as acções de “reposição de carga horária” que interpunham com fundamento na redução unilateral de remuneração por parte da entidade patronal.
(iv) E os associados do SNESup têm uma má experiência com o Sindicato que nunca publicou as actas da tentativa de conciliação na DGERT.
(v) Lembro-me de uma situação em que numa escola em dificuldades económicas a administração impôs um corte de 20 % da remuneração, com assinatura de um adicional ao contrato em que simultaneamente se cortava a carga horária a 20 %, isto é passando os docentes a tempo parcial.