Em todo o mundo ocidental rebentou o clamor quanto ao que os nossos vizinhos do outro lado do Atlântico denominam de ‘cancel-culture’, e que eu prefiro designar – num conceito algo alargado que tentarei explicar – de talibanismo ocidental.
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A parte escondida do iceberg
Começando por aqui, porque sem nos entendermos no vocabulário dificilmente avançamos, a chamada ‘cancel-culture’ em sentido estrito poder-se-á traduzir por ‘ostracismo’, e quererá dizer que uma série de ícones nacionais, políticos, filosóficos ou artísticos devem ser apagados, a começar dos currículos escolares, e a continuar das imagens ou referências públicas.
Entre incontáveis outros exemplos, é assim que a música de Beethoven passou ao índex nos EUA por ser símbolo do machismo, do homem branco e das elites, ou que conferências que assinalam o centenário da morte de Napoleão foram canceladas em França e que entre nós temos os debates sobre a demolição da sinalética imperial no perímetro dos Jerónimos.
Há várias razões pelas quais o termo não me parece adequado. Trata-se de um neologismo utilizado em substituição de palavras mais adequadas (censura, ou ostracismo) e trata-se de um eufemismo que serve para edulcorar a realidade; mais importante que a censura é o movimento, em que se insere, que passa por derrubar estátuas; não se limita a cancelar ou a esconder, dedica-se também a destruir.
O movimento tem o seu antecedente histórico mais próximo e assemelha-se ao movimento da revolução cultural chinesa, e foi assim que vários analistas políticos, eu inclusive aqui no Tornado, o temos designado. Não pondo em causa que a República Popular da China possa estar interessada neste movimento de suicídio cultural que se vive no Ocidente, a presença politicamente mais clara é contudo a do fanatismo islâmico, e daí, a expressão de ‘talibanismo’ – forma mais popular como é conhecido entre nós o Jihadismo – parecer-me a mais apropriada.
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O falso debate
Entre nós o tema foi afogado pelo debate sobre a opinião de um português oriundo de Casamança – antiga região colonial portuguesa que passou em 1896 para o domínio colonial francês – Mamadou Ba, a quem um movimento popular exigiu mesmo a retirada da nacionalidade na sequência de opiniões que exprimiu publicamente.
A liberdade de expressão e a cidadania são princípios fundadores da nossa democracia, e ambos os princípios foram obviamente postos em causa por esse movimento contribuindo mais do que qualquer outra coisa para dar eco às palavras de Mamadou Ba.
Para a nossa Constituição existem apenas cidadãos de primeira, e ninguém é menos ou mais cidadão de acordo com o sítio onde nasceu, como de forma mais óbvia a aplicação do princípio não é dependente das convicções ou etnia do cidadão em causa.
Contestar a cidadania portuguesa de Mamadou Ba ou o seu direito a ter as suas opiniões é dar-lhe razão quando reclama do racismo em Portugal.
Posto isto, seja da autoria de Mamadou Ba ou da de tantos outros que dizem o mesmo, creio não devermos tão pouco tomar a opção contrária e atribuir-lhe um estatuto de inimputabilidade que nos proibiria de exprimir a razão pela qual discordamos dele, sob pena de sermos apelidados de ‘racistas’.
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O debate que falta fazer
Na sua mais recente entrevista, Mamadou Ba toca os pontos que creio serem essenciais para o debate que não foi ainda feito.
Afirma ele que não é racista porque é negro. Acontece que ser negro em nada impede alguém de ser racista, mas, pelo contrário, a afirmação permite ser interpretada como querendo dizer que não ser negro é condição necessária para ser racista – interpretação que, ela sim, é racista.
Continua por reduzir o racismo à cor da pele, o que é uma rematada distorção da verdade. Nada há de mais terrível como símbolo do racismo que o antissemitismo e o holocausto a que conduziu, e o antissemitismo pouco ou nada tem a ver com a cor da pele.
A esse propósito, descobriu-se recentemente que o bebé modelo dos Nazis era na verdade judeu, e isto por uma razão muito simples, nada há na cor da pele, dos olhos ou do cabelo de um judeu que sirva para necessariamente o distinguir de um não judeu. Mesmo se quisermos olhar para genocídios racistas mais recentes, vemos o genocídio no Ruanda onde vítimas e algozes tinham exactamente a mesma cor da pele.
Continua depois Mamadou Ba dizendo que olhava com interesse para o movimento que no Ocidente destruía estátuas, mas que considera não ser essa prioridade em Portugal; aqui seria mais importante combater a ideologia que se esconde por trás das estátuas.
A afirmação é significativa em três planos. Em primeiro lugar, sugere-se desta forma que alguém que não seja favorável à demolição de uma estátua do Infante D. Henrique terá uma ideologia escondida, e não será difícil de alvitrar que essa ideologia possa ser o ‘esclavagismo’, dado que o comércio de escravos foi uma das actividades a que o Infante se dedicou e que mais tem sido denunciada pelo talibanismo ocidental.
Creio que a generalidade dos que reconhecem o interesse e o mérito dos Descobrimentos partilha da convicção de a abolição da escravatura ter sido um avanço civilizacional de enorme importância, e que de forma alguma se revê na sua apologia, nem considera de resto o comércio de escravos como o que o tornou importante.
Em segundo lugar, quer isto dizer que a demolição das estátuas é para ser feita, apenas em condições mais propícias que as presentes.
Em terceiro lugar, Mamadou Ba fala do assunto como se nada tivesse a ver com ele quando ele foi das pessoas que mais se notabilizou por protestar contra a inauguração de uma estátua ao Padre António Vieira porque como explicou: ‘erguer uma estátua do Padre António Vieira com índios nus’ seria ‘um patético saudosismo colonial e uma inaceitável ofensa’.
Ora temos aqui o busílis da questão: será que Mamadou Ba tem um problema com o suposto esclavagismo ou racismo do Padre António Vieira ou com a existência de estátuas com pessoas nuas?
Sendo ainda mais claro, o problema é o racismo da estátua ou antes o fanatismo moralista do crítico?
Casamança, terra de Mamadou Ba, faz hoje parte do Senegal, país que faz fronteira com uma vasta região do Sahel martirizada pelo Jihadismo e que faz fronteira também com o último país do mundo a abolir legalmente a escravatura, a Mauritânia, e onde ela continua, contudo, a florescer. Mamadou é um nome comum na África colonizada pelo Islão e é uma abreviatura de Maomé, o que faz crer que Mamadou Ba nasceu no seio da confissão religiosa muçulmana.
Oriundo dessa realidade, tendo sido dirigente do ‘Bloco de Esquerda’ e estando à frente de uma organização denominada de ‘SOS Racismo’, seria naturalmente de esperar ver Mamadou Ba alertar Portugal para a necessidade de se lutar contra o supremacismo religioso jihadista e o esclavagismo, realidades tão próximas das suas origens.
Mas confesso que tendo procurado no seu vasto historial de intervenções, nada encontrei sobre esses temas.
A esse propósito quero esclarecer que o verdadeiro racismo que me choca no Ocidente é esse: o de se considerar que os que porventura têm aparência física diferença da nossa ou que são adeptos de outras confissões religiosas serão menos merecedores do respeito pelos direitos humanos, e que portanto, os podemos ignorar.
Por outro lado, não sou partidário da história como instrumento de exaltação ou de martírio; acho inaceitável falseá-la, embora reconheça que ela é importante na definição da identidade de todos nós, e que quem esconde ou menospreza a sua história dá o primeiro passo para ser colonizado.
Olhar para a nossa história de forma equilibrada, não escondendo o que ela tem de menos bom nem menosprezando o que ela tem de positivo, assumindo-a em pleno, como marcas da nossa identidade é a atitude que eu creio deve ser tomada por todos nós.
Posto isto, se me parece inaceitável e demagógico criticar um qualquer aspecto negativo de uma realidade política – e nenhuma realidade política é isenta de erros – para defender de contrabando uma outra realidade onde os aspectos negativos são muito mais acentuados, mais inaceitável e demagógico me parece ainda criticar o racismo ou o esclavagismo do que se fazia há quinhentos anos mantendo silêncio sobre o que se passa nos dias de hoje.
O que eu vejo na guerra que foi movida à estátua do Padre António Vieira é lapidar do que temos pela frente: trata-se de defender o fanatismo moralista que hoje é dominado pelo Jihadismo, trata-se de esconder toda a sua agenda reaccionária (que inclui o supremacismo, racismo e esclavagismo) e atacar a cultura que fez a democracia, aboliu a escravatura e ilegalizou o racismo.
A todos aqueles que aderem facilmente ao discurso pretensamente inovador e por vezes vendido como de ‘esquerda’ (o ‘islamo-esquerdismo’), convém que pensem um pouco mais em tudo o que está em jogo antes de tomarem partido.
Uma coisa é empenharmo-nos pela melhoria do mundo em que vivemos, outra, é sermos usados por uma ideologia supremacista, fanática, hiperconservadora que é a do Jihadismo; é tornar-nos em idiotas úteis ocidentais do talibanismo.
Nota do Director
O Tornado define-se no seu Estatuto Editorial como activo defensor do combate ao racismo e à xenofobia. Está no ADN do Jornal a firme rejeição de toda e qualquer forma de discriminação baseada no género, na orientação sexual, na cor da pele, nas convicções religiosas ou na simples diferença de opiniões.
O Jornal Tornado publica frequentemente comunicados do SOS Racismo por vezes enviados pelo próprio Mamadou Ba. Todavia o Director do Jornal subscreve na íntegra este artigo do seu colunista fundador porque considera que a leitura da história à luz dos conceitos actuais é uma forma de fundamentalismo que apenas serve para entreter e distrair os cidadãos dos problemas, e são muitos, da actualidade.
O racismo é uma forma de discriminar pela cor da pele e, infelizmente, não é apanágio de apenas uma cor. Ele existe na paleta de cores que constitui a raça humana e deve ser combatido em todas as circunstâncias.
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