Ganha corpo no Brasil o debate sobre a taxação das grandes fortunas. Principalmente neste momento de grave crise econômica e sanitária, setores progressistas da sociedade começam a pensar sobre a necessidade de efetivar uma reforma tributária que traga justiça para o povo brasileiro, impulsione a economia e rechace a reforma trabalhista, entre outros retrocessos sobre a vida de quem vive do trabalho.
A Constituição, promulgada em outubro de 1988, criou a possibilidade de taxação das grandes fortunas pela primeira vez no país, conta a juíza do Trabalho e professora universitária Valdete Souto Severo, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Mas essa possibilidade “nunca saiu do papel” porque “nunca conseguimos mexer nesse vespeiro por seguirmos sendo um país dominado por uma aristocracia”.
E “Nada foi feito ainda, mesmo no período da República para que isso alterasse estruturalmente essa condição”. De acordo com Valdete, “mesmo nos governos alinhados com as reivindicações da classe trabalhadora nunca se discutiu taxar as grandes fortunas no país”.
Mas a necropolítica e o descaso com a coisa pública do desgoverno de Jair Bolsonaro “alavancaram esse debate, mesmo que ainda contido em setores mais avançados da sociedade, porque com o isolamento social, os muito ricos conseguiram aumentar sua renda e os mais pobres se viram na pobreza extrema, colocando o Brasil no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) novamente”, argumenta Ivânia Pereira, vice-presidenta da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
O auxílio emergencial de R$ 600 distribuído no ano passado, contra a vontade de Bolsonaro e do ministro da Economia Paulo Guedes, “desnudou a perversidade dos projetos aprovados após o golpe de Estado de 2016 contra a classe trabalhadora”, destaca Ivânia. “O movimento sindical pode jogar peso nesse importante debate para mostrar à sociedade que os mais ricos pagam muito pouco imposto no Brasil”.
Cerca de 70 milhões de brasileiros estão passando fome com o aprofundamento da crise, o desemprego e a falta de projeto de desenvolvimento nacional com criação de empregos.
Principalmente porque o Brasil tem uma das maiores concentrações de riquezas do mundo. Mesmo assim, essa discussão ganha pouco espaço no Congresso Nacional e menos ainda nos grandes meios de comunicação porque “grande parte da elite brasileira é arcaica e permanece com a visão colonial e escravocrata”, acentua Valdete.
Isso porque o recebimento de dividendos, ou seja, o lucro dos patrões, não é tributado, no país. Os especialistas afirmam que são os mais pobres e a classe média que pagam mais impostos. Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em 2020, o 1% mais rico detém 28,3% da renda no país. Os 10% mais ricos abocanham 42,5%. Enquanto os 40% mais pobres ficam com 10,4%.
“Se você quer ter uma economia mais inclusiva e solidária, vão ter que taxar as grandes fortunas. Tem que taxar o patrimônio. No Brasil, o patrimônio tem uma participação ínfima na receita fiscal. Assim como o nosso imposto de renda também é muito favorável aos ricos. A faixa mais alta da renda tem uma alíquota muito baixa. Uma das mais baixas, se não a mais baixa do mundo”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Um estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo mostra como a taxação de grandes fortunas poderia elevar o Produto Interno Bruto (PIB) em até 2,4%. “A redução da desigualdade tem benefícios em si. Sabemos que ela tem custos que não só têm a ver com o direito à renda e à dignidade humana, mas tem também efeitos políticos, pois a desigualdade tende a criar distorções no próprio sistema democrático”, diz Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP.
Essa desigualdade vem de longe como aponta Valdete. “Desde a colonização tivemos uma tradição, que se mantém, com algumas famílias abocanhando a maior parte da riqueza produzida com forte controle da política e dos meios de comunicação”. Para ela, “basta reparar o quanto ainda somos afetados pela questão de eleger alguém por ser filho de fulano, por ser esposa, marido, o quanto algumas famílias acabam mantendo o controle político de determinadas regiões”.
E “são essas famílias as afetadas pela taxação como outros países fazem”, revela a juíza gaúcha. Países como Noruega, Suíça, Uruguai, Argentina, Bélgica, Itália, França, Espanha e México, só para citar alguns. Nenhum é socialista.
A taxação das grandes fortunas, portanto, “não significa taxar quem tem duas casas, uma casa e uma casa na praia, quem tem uma empresa de médio porte, mas sim tributar quem ganha muito para que essa parcela da população retribua os seus ganhos para o bem da sociedade e pelo desenvolvimento autônomo do país”.
Para Valdete, “quem acumula muita riqueza” deve “retribuir ao Estado de forma proporcional a essa acumulação que consegue auferir, porque essa é a ideia da tributação da grande riqueza”. Trata-se de “exigir de quem acumula mais capital e atua em determinado estado que dê retorno para esse estado e que esse retorno possa reverter em saneamento básico, saúde, educação para quem precisa e não tem condição de acumular riqueza”.
E não consegue acumular “porque não tenha a mesma habilidade, a mesma capacidade. É simplesmente porque não nasceu filho de fulano ou porque tem uma determinada cor de pele ou uma condição de gênero que coloca esse indivíduo em uma condição absolutamente desigual”.
Para mostrar à sociedade a importância desse debate, 70 organizações lançaram em outubro do ano passado a campanha Tributar os Super-Ricos, em forma de quadrinhos com a personagem Niara, criada pelo artista Aroeira. A pretensão é de taxar as pessoas físicas com ganhos superiores a R$ 10 milhões por ano.
Pela proposta, é previsto um aumento de cerca de R$ 300 bilhões na arrecadação anual do governo com a taxação das grandes fortunas. A campanha pretende também reduzir o pagamento do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 15 mil por mês, diminuir a tributação das micro e pequenas empresas, que são as que geram mais empregos, entre outras questões.
A taxação é essencial para aumentar os investimentos em “saúde, educação, moradia e trabalho decente”, afirma Valdete. Além de “fomentar a indústria nacional, abandonada no Brasil já há várias décadas”. O movimento sindical luta há anos contra a desindustrialização porque isso leva o país ao desemprego e ao retrocesso. “Sem indústria não existe desenvolvimento soberano com combate à pobreza”, reforça Ivânia.
“A abertura para o capital estrangeiro na década de 1990”, por exemplo, destaca Valdete, acarretou “a destruição de vários nichos da economia nacional por absoluta impossibilidade de competir com o preço dos produtos que chegavam de outros países”. De acordo com ela, “o Brasil paga o preço do abandono da indústria nacional e cada vez mais se aprofunda com o projeto de privatização das nossas principais estatais, que são altamente lucrativas”.
A presidenta da AJD lembra sobre a dificuldade que esse governo tem para liberar o auxílio emergencial para milhões de brasileiros em meio à grave crise sanitária e econômica pelas quais passa o país. E agora o Congresso aprova uma proposta do Poder Executivo de pagar um auxílio entre R$ 175 e R$ 375 e para pouco mais de 40 milhões de famílias e não as cerca de 68 milhões que receberam no ano passado. “Um auxílio emergencial desse porte, num quadro grave como o que vivemos nessa pandemia com a morte de mais de mil pessoas por dia, não resolve absolutamente nada, não permite nem o mínimo”.
O movimento sindical, diversos partidos políticos e movimentos sociais defendem o auxílio emergencial de ao menos R$ 600 para manter as famílias em condições de enfrentar a pandemia com um pouco menos de dificuldade, porque “a miséria cresce com a falta de atitude de uma política nacional de desenvolvimento com valorização do trabalho e com justiça social”, reforça Ivânia.
“Como já vimos, o auxílio emergencial é necessário porque tem um efeito imediato na economia interna porque as pessoas consomem com esses valores”, assinala Valdete. Mas, diz ela, “é preciso ir além e criar um projeto de desenvolvimento que contemple a classe trabalhadora e respeite a vida de todas e todos. O Brasil precisa de um governo capaz de liderar a união do país com respeito à Constituição e aos direitos humanos”.
Os resultados do estudo USP comprovam que “os 10% mais pobres gastam cerca de 90% da sua renda adicional em consumo, o valor cai para 24% entre o 1% mais rico. Levando em consideração a atual estrutura distributiva da economia brasileira e as distintas propensões a consumir de cada estrato de renda, mostramos que cada R$ 100 transferidos do 1% mais rico para os 30% mais pobres geram uma expansão de R$ 106,70 na economia”, argumentam os realizadores do estudo.
Já sobre o auxílio emergencial como foi pago em 2020, “calculamos que cada R$ 100 pagos através do programa aumentam a renda agregada em R$ 140”. E uma “política de proteção social financiada a partir de tributos sobre o 1% mais rico, que garanta a transferência de R$ 125 mensais para os 30% mais pobres. A medida eleva o multiplicador da economia, tornando mais expansionista qualquer nova injeção de demanda”.
Valdete defende a necessidade de “investimento na promoção do trabalho decente” porque “as pessoas precisam de trabalho”, mas com “empregos com todos os direitos como constam do artigo 7º da Constituição e estão previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)”, então “quando o governo resiste a criar um auxílio emergencial em valores irrisórios e ao mesmo tempo libera bilhões para os banqueiros soa como um deboche para quem tenta sobreviver no Brasil, sem ter condições de produção ou de renda”.
É importante entender que “taxar as grandes fortuns daria ao governo não apenas o dinheiro necessário para essa medida urgente de garantir renda durante o isolamento social” essa medida deve “garantir a realização de políticas públicas que fomentem a produção nacional, a indústria e em consequência o emprego com direitos”, sinaliza Valdete.
Texto em português do Brasil
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