Não é pouco, mas nada de novo. Sabemos, de saber feito, que o passado não pode ser removido. O que está feito, feito está. Se mal ou bem, colhemos as consequências em conformidade.
Resta-nos conhecê-lo o melhor possível e ter a inteligência para aprender com ele.
Certo das vantagens desta serventia, permito-me abordar brevemente, à luz da História, a preocupação crescente com os dias de indefinição que correm e o futuro imediato, que ameaça ser aziago.
Há uns anos sentíamos um certo equilíbrio no mundo. Sabíamos ou antevíamos de onde vinha o poder. De onde emanavam as grandes directrizes orientadoras do concerto ou desconcerto das nações.
Havia a confrontação de blocos que se reflectia pelos vários continentes de forma quase sempre sangrenta, muitas vezes bárbara, mas entre os dois líderes dos dois blocos, além dos períodos de maior agressividade verbal, arrufos de quem sabia que jamais poderia partir para o confronto directo, imperava a era da «coexistência pacífica.»
Os EUA ou a URSS falavam e algo se alterava num qualquer ponto do mundo. Podíamos não gostar, porque nos sentíamos menorizados, mas se algum destes países impunha uma acção ou omissão na sua esfera de influência, a ordem era invariavelmente cumprida.
Tudo pesado, comparando essa realidade com a actual, com algum exagero e não isento de salpicos de ironia, podemos até dizer que éramos felizes e não sabíamos.
Hoje o poder no mundo é difuso. Ninguém pode dizer que sabe quem manda verdadeiramente. Hoje os maiores países bem podem tentar dar ordens a certos grupos violentíssimos, que semeiam o ódio e a morte por esse mundo e nada acontece a não ser o alargar do espectro do ódio e da morte, por vezes mesmo nesses países que tinham a aura de intocáveis, de imperadores venerados.
Na verdade, com o desenvolvimento da Revolução Industrial e a inerente exploração desenfreada da mão-de-obra operária, não tardou que surgisse quem com isso se preocupasse.
Em meados do século XIX, surgiu o Manifesto do Partido Comunista que representou uma pedrada no charco, turvando de tal forma as águas até aí claras do capital, que nunca mais este se recompôs a não ser quando se deu a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da URSS.
Com a esquerda a organizar-se em torno dos sindicatos, que cresciam, e dos partidos que se multiplicavam – primeiro comunistas, depois socialistas de cariz pluralista e social-democratas -, a exploração capitalista continuou, claro, mas gradualmente foram introduzidas regras que em muito beneficiaram os trabalhadores do Ocidente.
Esta tendência teve evidente crescimento no pós-2ª Guerra Mundial, quando o comunismo saiu reforçado, principalmente nos países que haviam sido ocupados pelos nazis.
Por parte do patronato e do poder político tradicional havia o receio de que, ao não cederem nos direitos e nos salários, os partidos comunistas do Ocidente crescessem ao ponto de poderem vir a integrar governos, em países onde o domínio dos EUA era forte, em muitos casos incontestado.
Com isso ganhou o operariado, que, podemos dizer, nos anos 70 ou 80, em países avançados como a França e a Alemanha Federal, eram já considerados pequeno-burgueses, integrantes de uma classe média baixa, estatuto social a que nunca puderam almejar – não sendo sequer expectável umas décadas antes.
Quando o muro de Berlim foi derrubado e se desintegrou o bloco de Leste, a ideia de esquerda abanou e ressentiu-se. Mesmo a esquerda que não se identificava com a URSS se retraiu. A direita, finalmente, via as águas clarear e não perdeu tempo, ocupando o espaço deixado livre.
Daí ao retrocesso civilizacional foi um salto curto. A esquerda europeia que ao longo dos anos foi alternando no poder com uma direita democrata-cristã, parece ter perdido o rumo. Mesmo esta direita tradicional perdeu o pendor humanista que a caracterizava, mostrando as garras que até ali, por estratégia, se mantiveram quase sempre recolhidas.
Os cuidados necessários para evitar o engrossar das fileiras comunistas haviam perdido o significado. O adversário de sempre parecia ter desaparecido.
As grandes empresas e as multinacionais, que sempre alinharam nesta estratégia, sentiram que era tempo de recuperarem o investimento feito ao longo de décadas, daí terem tomado conta da regulação do comércio mundial, que levou à globalização selvagem em que vivemos.
Em poucos anos puseram em concorrência directa o operariado do Ocidente, cuja luta de séculos o levou a atingir um patamar de dignidade no trabalho, com o operariado asiático, por exemplo, que de uma forma geral continua a desconhecer conceitos como horários, segurança social e no trabalho, férias, salários condignos, etc..
O resultado é conhecido: a deslocalização maciça das unidades fabris para esses paraísos do capitalismo selvagem, onde as multinacionais, com um sorriso rasgado, foram encontrar as condições que existiam na Europa nos alvores da Revolução Industrial.
Acresce a vantagem de poderem colocar, sem grandes entraves, os produtos no Ocidente, onde se encontram os maiores índices de poder de compra, a preços quase iguais aos praticados quando os custos de produção eram os impostos por um quadro laboral de dignidade para os trabalhadores e para a sociedade que os alberga.
E tudo isto é permitido porque o poder político está perfeitamente conluiado com o poder económico e financeiro. Sim, medi a palavra conluiado. É disso que se trata, porque não acredito em almoços grátis.
O poder político cedeu às exigências do poder económico e este compensa, não os povos, não os trabalhadores que ficaram no desemprego, não os países que viram as suas economias ruírem, mas, claro, a classe política que tudo permitiu à troca de apoios para se tentarem perpetuar no poder, regalias pessoais ou para os grupos/partidos a que pertencem, num desprezo total e absoluto pelos seus povos, que, cegos por uma comunicação social que embriaga ao cumprir os ditames dos grupos económicos a que pertence, continuam cantando e rindo e votando em quem tanto os prejudicou e prejudica.
Afinal quem manda? Poucos saberão responder com propriedade. Os povos não são senhores dos seus destinos porque entre Estrasburgo, Bruxelas, Berlim, Davos ou, talvez Genebra, onde se situa a sede da Organização Mundial do Comércio, alguém há-de estar a tratar do nosso futuro.
E nós deixamos, pelo que o nosso futuro, no mínimo, será algo frio e sem graça, enquanto o deles, se tudo continuar como até aqui, será risonho, com o sol ameno e a aragem da ventura de feição.
É curioso verificar uma polarização do espectro partidário, com o evidente apagamento dos partidos colocados mais ao centro, aqueles que mantiveram o equilíbrio e foram capazes de criar riqueza sem deixar de olhar pelos direitos dos trabalhadores.
Foi este «centrão», mais à esquerda ou mais à direita, que criou a CEE, uma verdadeira revolução social na Europa, capaz de estacar uma torrente secular de guerras no continente e elevar os padrões de vida dos seus cidadãos. Hoje chama-se União Europeia, mas também ela está em crise, talvez mesmo e não por acaso, em vias de extinção.
Enquanto isto, emergem as tais franjas mais extremistas de um e do outro lado, com mais evidência para os movimentos da extrema-direita, dadas as posturas e discursos ameaçadores que exibem, que julgávamos perdidos num qualquer fio da malha da História.
Recuando a esses fios, a essa malha, a esses tempos e esses discursos, bem como ao que os sustentavam, conclui-se que nos trouxeram a miséria, a ignomínia face ao que homens foram capazes de fazer a outros homens, além dos muitos milhões de mortos entre militares e civis.
Um traço grosso e bem negro na História da Humanidade.
O que então aconteceu foi um verdadeiro trauma para todos os homens de bem, trauma que devia ainda estar bem dentro do prazo de validade, face ao impacto que causou.
Lamentavelmente, pelo alarido com que se fazem ouvir certas vozes e tão poucas a denunciá-las, parece que esse prazo se finou. Parece que esse trauma foi varrido dos espíritos; parece faltar capacidade para espicaçar as consciências.
Talvez falte História a muita dessa gente, de um lado e do outro, para que a notícia se espalhe, para que o despertar das consciências se dê e se multiplique.
Para que esses tempos não possam voltar; para que os homens e as mulheres de hoje possam dizer a quem faz esses discursos que este não é o seu tempo, que eles pertencem ao passado, a um passado a que não queremos regressar. Porém, não podemos assobiar para o lado quando os ouvimos, porque nenhum homem de bem pode dizer: «Não sou judeu, comunista, preto, cigano, mexicano, sírio, isto não é comigo.»
Qualquer discurso xenófobo ou racista tem de provocar algum tipo de desconforto a um homem de bem. Eles, os que os fazem e os que os sofrem, por razões diferentes têm de sentir que não estão sozinhos.
Em termos da política que procura resolver os problemas, é tempo de as esquerdas se unirem.
Ainda que não pensem o mesmo em todos os aspectos, é preciso que procurem o que as une e apostem nisso. Só assim parece possível inverter esta cavalgada desenfreada do capitalismo selvagem, que jamais parará se não for obrigado a fazê-lo.
Por isso desejo que a experiência que está a dar frutos em Portugal continue, se cimente, progrida; que os líderes dos vários partidos que integram a coligação tenham a inteligência para vencer as dificuldades que serão inúmeras, pensando apenas no que tem de os manter unidos: o afastamento do poder da extrema-direita que nos governou durante quatro anos, com os custos de todos conhecidos.
Que a experiência portuguesa possa servir de exemplo a outros países que se debatem com dificuldades semelhantes e que alastre. Pode passar por aqui a solução.
Unir as esquerdas tradicionalmente desavindas em nome de um bem maior: a defesa das conquistas civilizacionais que tanto sofrimento e morte causaram – se tivermos em linha de conta tudo quanto foi feito desde as primeiras reacções operárias à exploração desumana introduzida pela Revolução Industrial.