Temos mão livre para atacar o inimigo nos seus interesses económicos. Os aliados dos EUA na região, a Arábia Saudita e os Emirados, são fortemente dependentes de duas coisas: petróleo e as torres de vidro que eles construíram em torno do Golfo Pérsico e do mar vermelho…
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A sietskrieg em preparação da blitzkrieg
A wikipedia faz uma apresentação interessante daquilo que a minha geração aprendeu a designar a partir da expressão francesa como ‘drôle de guerre’ discorrendo sobre as várias traduções que a expressão conheceu na altura e escolhendo como a melhor tradução para português a ‘guerra da mentira’.
Trata-se do período de tempo que decorreu entre a declaração de guerra do Reino Unido e da França à Alemanha a 3 de Setembro de 1939 e a invasão dos Países Baixos e da Bélgica a 10 de Maio de 1940.
Uma tradução mais exacta seria de ‘guerra a fingir’ ou, mais uma vez para alguém de gerações como a minha ou menos jovens ainda, ‘guerra do Solnado’ em alusão a uma paródia tornada célebre por esse actor. Como o artigo citado explica, em alemão foi criado o trocadilho de ‘Sitskrieg’ (fazer guerra sentado) por oposição a ‘Blitzkrieg’ (guerra relâmpago).
Ao que tudo indica, as autoridades alemãs ficaram surpreendidas pela declaração de guerra franco-britânica, dado que esperavam que, tal como tinha acontecido com a Checoslováquia e com a Áustria, esta aliança tentasse apaziguar o agressor.
Nessas circunstâncias, dado que precisavam de mais algum tempo para ultimar os preparativos para a invasão a Ocidente – nomeadamente na produção de Panzer em número suficiente – os estrategas alemães resolveram apostar antes na paralisação franco-britânica através de uma guerra psicológica em que a mentira serviu para alimentar a psicose do apaziguamento.
A propaganda começou com um filme em que apareciam guardas polacos a atacar os postos fronteiriços alemães, filme que servia de prelúdio à explicação da ‘contraofensiva’ alemã, e continuava com uma intensa campanha de desinformação e terror psicológico que foi coroada de sucesso.
A mentira era grosseira, estava em claro choque com tudo o que se sabia, e não seria capaz de enganar qualquer observador minimamente racional, mas aqui há que entender a psicopatia do apaziguamento em que o pavor da agressão leva o potencial agredido a agarrar-se a qualquer ficção que o distancie da realidade da agressão e o mantenha na ficção de que ela não existe.
O historiador consagrado como o melhor especialista de Hitler e da segunda guerra, que cito amiúde, Ian Kershaw, no seu interessantíssimo ‘Fazer amizade com Hitler’ centrado na figura de Lord Londonderry, não deixa de citar outros personagens que foram decisivos para o sucesso da agressão hitleriana.
Entre estes, talvez o mais importante tenha sido o líder trabalhista dos anos 30, George Lansbury, que em nome da ‘paz’ defendeu então a abolição do exército, da força aérea e de ‘todo o terrível equipamento de guerra’ (Kershaw, p.80), que em 1938 felicitou Chamberlain pelo acordo de Munique e que foi um dos mais importantes pilares britânicos da estratégia hitleriana de ‘sietskrieg’ ao fazer campanha pela ‘paz’ em Novembro de 1939 (ou seja, campanha pela rendição à agressão Nazi) e que entretanto visitou Hitler em data que Kershaw não precisa.
George Lansbury saiu da sua relativa obscuridade histórica através do actual líder trabalhista Jeremy Corbyn (e anterior comentador pago na televisão estatal iraniana), que o citou como um modelo de defensor da paz.
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A nova guerra do Golfo
O ataque iraniano de 12 de Maio com a colocação de minas magnéticas explosivas em quatro petroleiros fundeados no emirato de Fujairah – recorde-se, um dos Emiratos, dois sauditas e um norueguês – seguido do bombardeamento do oleoduto saudita construído para ladear o estreito de Ormuz foi, como escrevi então, exemplarmente desenvolvido do ponto de vista da logística e da guerra psicológica.
O ataque tinha sido anunciado publicamente no dia anterior no porta-voz oficioso do líder espiritual iraniano, recordo aqui traduzido por mim da versão inglesa publicada pelo Gatestone Institute:
Temos mão livre para atacar o inimigo nos seus interesses económicos. Os aliados dos EUA na região, a Arábia Saudita e os Emirados, são fortemente dependentes de duas coisas: petróleo e as torres de vidro que eles construíram em torno do Golfo Pérsico e do mar vermelho… Devemos absolutamente, apontar para a veia vital desses dois países, quer dizer as suas exportações de petróleo. E podemos fazer isso no Oceano Índico e no Mar Vermelho. Tal operação, sem dúvida, forçará a Arábia Saudita e dos Emirados líderes a pedir a paz ao Irão.’
É claro que em paralelo a esta declaração, fizeram muitas outras a negar o ataque, a dizer que era necessário encontrar aqui um entendimento para a paz (aqui fazendo lembrar o Don Corleoni) ou a culpar o imperialismo ou o sionismo, o tipo de lixo desinformativo que produzem há décadas e que ninguém com o mínimo de bom senso e razoavelmente informado leva a sério.
Mesmo assim conseguiram fazer com que mesmo os EUA levassem tempos infindos a declarar aquilo que não poderia oferecer dúvidas a ninguém, e a maior parte da imprensa – exactamente como nos tempos da agressão hitleriana, como nos explica Kershaw – a fazer coro com eles, conseguindo a proeza de simultaneamente declarar que não há provas de que o ataque seja iraniano e a importância de fazer paz com o Irão (e porque razão fazer a paz, se não há provas de que o Irão tenha a ver com o ataque?)
Passado um mês, e perante a cegueira e apaziguamento ocidentais, o Irão resolveu naturalmente aumentar a parada, desta vez atacando directamente dois petroleiros a poucas milhas da base naval dos Guardas Revolucionários Islâmicos de Bandar-e-Jark exactamente aquela que eu identifiquei como a base mais provável para o ataque precedente (identificação que não vi feita em nenhum outro lado).
Desta vez o anúncio do ataque foi feito de forma consideravelmente mais clara, na véspera, pelo responsável pela diplomacia iraniana, lado a lado do seu homólogo alemão:
Ninguém pode esperar que se desenvolva uma guerra económica contra o povo iraniano e que os que o fazem fiquem seguros’.
Naturalmente isso não o impediu de no dia a seguir sugerir que se tratava de uma cabala e que o Irão nada tinha a ver com o ataque, exactamente como fez, ainda há um ano atrás quando do último atentado terrorista iraniano em Paris, o que não o impediu de exigir a libertação do diplomata iraniano que dirigia a operação e que foi apanhado com a boca na botija.
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Uma nova guerra da mentira?
Como sempre, os dirigentes ocidentais não entenderam que foi a ânsia pressurosa com que correram para Teerão que tornou inevitável o novo ataque e multiplicam-se agora em pungentes apelos à paz, o que só pode levar-nos a temer o pior. A par disso, assistimos à multiplicação na imprensa e nas redes sociais de uma histeria colectiva que nega o óbvio e inventa conspirações.
Na mesma altura é finalmente revelado que em 2015 os serviços secretos britânicos tinham localizado no Norte de Londres quatro depósitos de material para o fabrico de bombas do Hezbollah, com três toneladas de nitrato de amónio, mas que ninguém foi preso ou acusado para não perturbar o acordo com o Irão.
Mesmo os EUA, cuja nova administração rompeu com a política da sua antecessora, não dão garantias de estar à altura dos acontecimentos.
A única linguagem que os dirigentes iranianos entendem é a da força e não há qualquer alternativa ao fim da impunidade com que têm desenvolvido os seus ataques. Qualquer recuo apenas os incentivará a prosseguir.
É uma lição de que o estudo de quatro décadas de teocracia não deixa qualquer dúvida.
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