tamen haec noui iudici noua forma terret oculos, qui, quocumque inciderunt, consuetudinem fori et pristinum morem iudiciorum requirunt.
“Todavia, esta nova configuração de um novo tipo de tribunal é causa de terror para o meu olhar, o qual, onde quer que recaia, demanda a costumeira praxis forense e o vetusto hábito judicial.”
Cícero, Pro Milone (Defesa de Milão) 1
Cícero invocava assim o tremendo aparato militar, disposto por Pompeio, que se fazia presente no tribunal aquando da sua defesa de Milão, em 52 a.C.. Invocava também a multidão de partidários de Clódio, por cujo assassinato estava Milão a ser julgado. A ela não atribuía, convenientemente (fosse para conforto próprio ou para atirar água na fervura da tensão político-jurídica de então), intenções de intimidar o advogado de defesa e os jurados, mas um mero propósito de que os trabalhos de causídicos e juízes decorressem na maior tranquilidade. Há coisas que aterrorizam os olhos, outras os ouvidos. Ambos os sentidos. O sentido em Cícero percutido era o da visão. Porém, há outras que percutem e aterrorizam ambos, numa sinestesia holística. Em todos os sentidos, um terror ótico. Ótico de ouvido e ótico — dizem — de olho. Ou então isto nada tem de retoricamente relevante nem de poeticamente engenhoso, mas tem tudo de profundamente estúpido. E é esta estupidez que nos interpela, a nós, cidadãos utentes da língua, comuns ou profissionais, e sem acesso ao poder. Somos Cícero, militares e vigilantes da ordem ou juízes? Ou turbamulta que assiste inane a um julgamento extraordinário? Penso que somos, ou devemos ser, tudo ao mesmo tempo. A tranquilidade deixou-nos, o receio, a coragem tentam-nos, o zelo e a ira partidárias empurram-nos à acção e a reclamar para nós mesmos o papel de juízes contra o crime cometido por mãos oficiais com a cumplicidade de agentes do terror e a indiferença de muitos.
Já tudo, ou quase tudo, foi dito das muitas aberrâncias da novel escrita plasmada num documento chamado “acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990” (ao90). Acerca das errâncias de ilegalidade e inconstitucionalidade presentes na Resolução do Conselho de Ministros de 8/2011, que putativamente lhe conferiu carácter de oficialidade pelos séculos dos séculos amen. Acerca das quiméricas unificações lusofónicas e das políticas indecências que têm forçado essa nova forma de julgar. Talvez também pouco interesse insistir no terror que causa aos olhos essa nova forma de escrita. Têmo-nos habituado a ler receção, conceção, espetadores? O ótico que é e não é óptico e nos causa terror.
Foi-nos garantido que não haveria terror e nada mudaria na pronúncia. Ainda há quem o jure. Causa aos olhos terror a explosão de escritas brasileiras como fato e contatos no português de Portugal e de outras misturadas e inventadas. E não menor é o terror para os ouvidos de pronúncias modificadas induzidas pela da nova escrita. Efeitos secundários por ultracorrecção induzidos nos hábitos desde a aplicação do ao90 no nosso país. As consoantes ditas “mudas”, além de etimológicas, cumprem em muitos casos um papel prosódico: mantêm a abertura da vogal precedente; extirpadas aquelas, a dita vogal é pronunciada intuitivamente fechada. Está-se perante mudanças reais na pronúncia. Do terror óptico passámos ao terror ótico. Afinal, estes dinossauros do Jurassic Park reproduzem-se. Venham daí exemplos, cronologicamente ordenados.
Primeiro exemplo: há uns dois anos, a minha filha mais velha, hoje com 15 anos de idade, viu no Facebook a palavra ativo. Não a reconheceu. Foi perguntar à mãe o que era âtivo. A mãe esclareceu-a. Note-se a pronúncia: com a fechado. Então com nove anos de escolaridade em França (incluindo a maternelle “pré-escola”), raramente lia em português. O óptico induz um ótico.
Segundo exemplo: quantos ouviram o primeiro debate entre António Costa e Pedro Passos Coelho para as Legislativas de Outubro terão escutado, se alguma atenção prestaram, adutar (por adòtar “adoptar”) e adôtou (por adòtou “adoptou”) pela boca do actual Primeiro-Ministro.
Terceiro: na conferência de imprensa de Jorge Jesus, após o Sporting ter eliminado o Benfica da Taça de Portugal, a primeira pergunta veio de um jornalista da Sporting TV, que interrogou o treinador sobre um fato.
Quarto: no Jornal da Noite da SIC de 7 de Dezembro, no respeitante à composição do Conselho de Estado, Jorge Costa, do Bloco de Esquerda, disse por telefone que “o Bloco tem a xpet’tiva”. Não é claro, mas assim soou. Da legenda consta perspetiva. A falta do c dito mudo provoca claramente o emudecimento da vogal átona precedente. A fonética do português de Portugal, que padece do fenómeno do fechamento e emudecimento das vogais átonas, tem aqui um bom spécimen. E tão claro que é dúbio o que de facto é dito e que induziu quem legendou a perceber perspetiva (ou antes, perspectiva), sendo que antes parece tratar-se de expetativa (ou antes, expectativa). O óptico influncia um determinado ótico.
Quinto: no Jornal das 13 da RTP de 17 do mesmo mês, notícia de que o cidadão Armindo Castro esteve preso pela morte da tia, crime que outro terá cometido. O advogado de defesa, em declarações à reportagem, diz, com um intervalo de escassos seis segundos, que houve um pedido de atenuação das medidas de coação, mas que não terá havido nenhuma diligência para que as medidas de coàção fossem atenuadas. Na primeira ocorrência do termo (coacção), pronunciou como coação, com a fechado (acto ou efeito de coar); na segundo, com a aberto, correctamente (acto ou efeito de coagir). Coam-se consoantes e o que fica no coador não é o metal precioso, mas a grosseira e indistinta canga coação (que também pode ser co-acção). As facultatividades na escrita, autorizadas pelo ao90, passaram à oralidade. O terror óptico converteu-se em horror ótico.
Os exemplos citados ilustram manifestamente os efeitos secundários deletérios, graduais e inexoráveis, do cancro do ao90 na nossa amada língua, inculta e bela, como escreveu o poeta brasileiro Olavo Bilac, e sobre a qual se lamentou Vasco Graça Moura, justamente, com o verso “mas é o teu país que te destroça”. Por um lado, uma jovem em cujo cérebro os mecanismos da fonética do português materno e da relação desta escrita estão intuitivamente gravados, a despeito da rara frequência da escrita na língua materna. Por outro, adultos, escolarizados na clássica e legítima grafia de 1945, com alguma formação (dois políticos, um advogado e um jornalista), que dificilmente suspeitaríamos poderem sofrer de tais sintomas, mostram que, afinal, esse cancro penetra qualquer vítima, corrói-a por dentro. E ainda há quem espere, num tolo exercício de wishful thinking, que a memória das pronúncias jamais nos leve a pronunciar e escrever receção como recessão, por exemplo. Ou quem, como outros apóstolos da religião acordista, jure que erros destes sempre se deram, que se devem apenas a ignorância. Os factos sempre se travestiram de fatos, admita-se (em dia de Carnaval ou de episódios de transgenderism ortográficos), mas admita-se com maioria de razão que as ocorrências de fatos e contatos explodiram exponencialmente desde 2011. Espalha-lhe por toda a parte, até no oficial Diário da República. Se assim é, se até pessoas com formação exibem tal ignorância, com que engenho e arte se pode imaginar que os nossos filhos aprenderão a guardar a memória ortofónica da língua, da qual ainda são petizes aprendizes?
O exemplo da minha filha é límpido: os mecanismos intuitivos do funcionamento da língua desmentem a santa ingenuidade desses religiosos terroristas da língua. Os factos (ou como alguns escrevem, e dizem, os fatos) estão aí. Sabemo-lo bem. E muitos não se resignam. Expôs-se apenas uma pequena amostra. Pois que insistam em tapar o sol com o coador, que o terror óptico se tornou ótico. Em ambos os sentidos: o próprio e o adulterado.
*tradutor juramentado em França
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