Foi tornado público na passada 3ª feira, 11 de Julho, aquilo que a investigação da Unidade Nacional Contra Terrorismo da Polícia Judiciária apurou (e com isso levou a que o Ministério Público proferisse um despacho de acusação nesse sentido):… elementos da PSP da Esquadra de Alfragide praticaram, em 5 de Fevereiro de 2015, não só crimes inauditos de violência e tortura policiais, de sequestro, de graves ofensas à integridade física e discriminação racial contra seis jovens, todos do bairro da Cova de Moura, alguns deles ligados à Associação Moinho da Juventude, como também de perjúrio, falsificação de documentos (tais como relatórios e autos de notícia) e denúncia caluniosa, acusando falsamente os mesmos jovens de resistência contra funcionário, injúria, dano e tirada de presos.
Como igualmente se apurou ter havido, por parte de outros elementos da PSP, a prática dos crimes de omissão quer de auxílio, quer de denúncia relativamente àquelas barbaridades perpetradas durante horas e horas seguidas pelos seus colegas. Tudo num total de 16 agentes, mais um chefe e uma subcomissária da PSP (que inclusive tratou de apagar os inúmeros vestígios de sangue no chão da esquadra) acusados.
O que se passou – tal como aliás já aqui tinha referido anteriormente – foi que, invocando o prévio apedrejamento de uma carrinha da PSP que circulava na Avenida da República junto ao Bairro da Cova da Moura ao início da tarde do dia 5 de Fevereiro de 2015, a mesma PSP desencadeou então (mais) uma violenta operação no mesmo Bairro, a qual passou por ameaças, insultos, agressões e inclusive por disparos de balas de borracha (uma das quais atingiu uma moradora do bairro que estendia roupa à janela da sua casa) e culminou com a prisão de Bruno Lopes, com a sua violenta agressão (sob o pretexto, agora visto ser comprovadamente falso, de que teria resistido à detenção) e com a sua condução à Esquadra de Alfragide.
Perante todos estes factos um grupo de apenas 6 jovens (e não 25 como a versão policial inicial e a comunicação social depois quiseram fazer crer), de que faziam parte Flávio Almada e Celso Branco, mediadores sociais da Associação Moinho da Juventude, dirigiu-se à Esquadra para saber o que se passava com o seu conhecido e amigo, por que razão fora detido e quanto tempo demoraria a detenção. Apenas isso, e não para procurar invadir a Esquadra (que é uma esquadra dita de intervenção rápida com equipes policiais armadas até aos dentes), como a mesma versão policial e a mesma Comunicação Social quiseram, convenientemente fazer crer.
O que então sucedeu foi que dois conseguiram fugir e os restantes quatro (Flávio, Celso, Miguel e Paulo), mais um quinto (Rui Moniz, que foi entretanto preso numa loja de telemóveis) foram puxados para dentro da esquadra, aí deitados no chão e depois, e durante horas e horas, barbaramente agredidos com bofetadas, murros, pontapés (um dos jovens perdeu mesmo os dentes da frente com um desses pontapés na boca), bastonadas e até tiros de balas de borracha, ao mesmo tempo que ouviam frases como: “Vão morrer todos, pretos de merda!”, “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação”, “Se eu mandasse, vocês seriam todos esterilizados”, “Vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda”, e até esta repugnante frase dirigida ao jovem Rui Moniz, o qual sofre de paralisia da mão direita devido a um AVC que sofreu aos 9 anos e que clamava desesperadamente por ajuda: “Então não morreste (do AVC)? Então agora vai dar-te um, que vais morrer! Ainda por cima és pretoguês, filho da puta!”.
Só ao fim de 48 horas os jovens terão sido levados a um juiz de instrução e só depois dessa ida ao Tribunal terão sido finalmente conduzidos ao hospital.
Ora, se é inegável a importância de a Polícia Judiciária ter investigado e o Ministério Público ter proferido um despacho de acusação destes, por cuja produção saúdo vivamente a corajosa Advogada dos jovens, Drª Lúcia Gomes, há todavia uma série de outras questões que não podem deixar de ser suscitadas e devidamente respondidas.
Antes de mais, a de porque é que um inquérito-crime destes leva 29 meses a ser concluído e o que é que o Ministério Público andou a fazer durante os primeiros meses do mesmo inquérito, antes de o remeter, para investigação, para a Polícia Judiciária. O que é que andaram a fazer durante todo este tempo entidades como o Alto-Comissariado para as Migrações, a Comissão para a Igualdade contra a Discriminação Racial, o Ministério da Administração Interna e a sua pomposamente denominada “Comissão de Alerta Precoce para a Cova da Moura” (que parece que nem passou do papel)? Mandaram um qualquer ofício para a IGAI e desligaram-se do assunto, satisfazendo-se com o arquivamento dos inquéritos?
Depois, sendo os elementos de prova investigados pela mesma PJ – depoimentos das vítimas, dos agressores, de testemunhas, relatórios do INEM e relatórios hospitalares – rigorosamente os mesmos de que dispunha, ou podia dispôr, a IGAI – Inspecção Geral da Administração Interna, como é possível que esta tenha arquivado o inquérito e 7 dos 9 processos disciplinares, sob pretextos como os de que “inexiste prova dos factos geradores da factualidade em causa” ou de que as diligências por ela própria, IGAI, efectuadas “evidenciaram a ausência de fundamento para a instauração de outros processos disciplinares”!?
E é mesmo absolutamente inaceitável – e nenhuma dessas entidades se pronunciou ou providenciou relativamente a tal – não apenas que os agentes envolvidos nas barbaridades cometidas, inclusive os dois que foram objecto de sanções (mas que, por virtude de recursos interpostos, nunca terão sido aplicadas), não só tenham continuado a prestar serviço na referida Esquadra de Alfragide como também a ir ao bairro e até, segundo relatos dos próprios, a intimidar vítimas e testemunhas, apontando para elas e proferindo expressões claramente ameaçadoras como: “eu conheço-te!”.
E, mais, que no próprio dia em que se conheceu a acusação, forças de choque da PSP tenham, em clara atitude provocatória, aparecido em massa no Bairro da Cova da Moura.
Ora, para além do decurso do referido processo contra os 18 elementos da PSP, com o respectivo julgamento e o proferimento da sentença, há agora que questionar e saber-se como funciona, quem fiscaliza e para que é que serve a dita Inspecção Geral da Administração Interna.
Aliás, a mesma Inspecção que, a propósito das violências e brutalidades policiais cometidas desde a Assembleia da República até ao Cais do Sodré na noite de 14 de Novembro de 2012 e das dezenas e dezenas de detenções, humilhações gratuitas, revistas e apreensões, designadamente de mochilas e de telemóveis, totalmente ilegais, levadas a cabo nessa madrugada, em particular nos calabouços do Tribunal de Monsanto, bem como a propósito das filmagens ilegais de manifestações sindicais e políticas, e ainda da detenção e ilegais revistas e apreensões de telemóveis, e a mais que falsa acusação da prática do crime de “atentado à segurança de transporte rodoviário” (punível com penas que podem ir até aos 8 anos de prisão) dos 226 manifestantes presos junto ao viaduto Duarte Pacheco em 27 de Junho de 2013, também já não vislumbrara em nenhum desses casos quaisquer indícios de ilícitos criminais e/ou disciplinares cometidos pelos agentes da PSP, que ficaram assim completamente impunes e livres para repetir estas e outras ainda mais graves façanhas.
Aliás, ainda muito recentemente, numa conferência realizada em 26 de Junho no Ministério dos Negócios Estrangeiros e relativa ao 30º aniversário da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, o responsável máximo da PSP não se cansou, a propósito do tema, de proclamar os “elevados padrões ético-profissionais” da Polícia…
Por fim, importa também desmontar com firmeza as teorias justificadoras dos abusos e violências policiais que sempre surgem nestas alturas, seja pela boca dos próprios polícias e lamentavelmente das suas associações representativas, seja por toda a sorte de “especialistas”, comentadores e jornalistas.
É que mesmo a eventual anterior prática de um crime – que de todo não se verificou no caso destes jovens barbaramente agredidos e insultados na Esquadra de Alfragide – não justifica minimamente qualquer tipo de violência ou abuso policial. Não apenas por força do princípio constitucional da presunção de inocência – que aliás só agora, e em proveito próprio, a Direcção Nacional da PSP se lembrou de invocar… – mas também dos princípios, igualmente constitucionais, do respeito pelos direitos humanos, desde logo à dignidade humana e à integridade física e moral dos cidadãos, da separação de poderes, e ainda dos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade dos meios empregues, princípios esses a que toda a Administração Pública e em particular os polícias estão estritamente vinculados (como apenas o antigo juiz do Tribunal Constitucional Dr. Guilherme da Fonseca teve a coragem de afirmar a propósito da brutal carga policial da noite de 14/11/12).
É preciso assim afirmar com total clareza que os agentes da polícia não têm mais dignidade humana que o mais relapso dos criminosos que porventura estejam a deter. Não podem julgar, sentenciar e sancionar os cidadãos, mesmo os suspeitos da prática de um crime. E mesmo quando legalmente autorizados a usar a força, têm de o fazer na medida do estritamente necessário (e, aliás, é para isso que são treinados e estão equipados e armados).
Os cidadãos que habitam nos bairros populares – já de si provocatoriamente denominados de “problemáticos”, precisamente com vista a procurar justificar acontecimentos como este da Cova da Moura – não têm menos direitos que os residentes nas Avenidas Novas ou na Quinta da Marinha (onde de todo não se assiste, como acontece naqueles Bairros, muitas vezes em directo pela televisão, à violentação pública desses mesmos direitos). O racismo e a xenofobia são intoleráveis em qualquer pessoa, mais ainda em funcionários públicos e muito mais naqueles cuja função é supostamente a de assegurar o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
A teoria pseudo-justificadora das intervenções ditas “musculadas” (sob o eterno e fascistóide pretexto do “restabelecimento da ordem”), varrendo tudo o que apareça à frente, mesmo que se trate de idosos, mulheres grávidas ou até crianças, ou simplesmente de cidadãos que nada têm que ver com os acontecimentos em causa (como sucedeu na referida manifestação de 14/11/12) e espancando tão gratuita quanto brutalmente cidadãos já deitados no chão, imobilizados ou até algemados (como sucedeu nas imediações do Estádio de Guimarães e da Luz), ao jeito de “estes filhos da puta não merecem outra coisa e estas já ninguém lhas tira de cima”, são tão ilegais e inconstitucionais quanto indignas e inaceitáveis num Estado que se diz de direito democrático.
E os seus responsáveis, bem como os respectivos encobridores, devem ser por estas práticas denunciados, acusados e castigados, sob pena de, um dia destes, ainda acontecer pior e a culpa, uma vez mais, morrer solteira…